sábado, 24 de fevereiro de 2018

A Casca da Serpente

A Casca da Serpente, José J. Veiga. Capa: Felipe Taborda. 155 páginas. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 1989.

A Guerra de Canudos (1896-1897) foi um dos acontecimentos de maior repercussão na história brasileira. Nos primeiros anos do surgimento da República dos bacharéis e latifundiários foi criada uma comunidade popular no interior profundo do país. Cresceu em número, em torno de 25 mil pessoas, unidas na sua miséria e desprezo pelas autoridades, mas o que de fato incomodou foi o aspecto social e religioso do movimento. De caráter messiânico e politicamente regressista, defendia a volta da Monarquia e baseava suas atividades numa prática católica fundamentalista, e rejeitando tudo o que a República representava: laicismo e os costumes burgueses típicos do capitalismo. Assim, para a elite oligárquica era preciso fazer alguma coisa, pois ameaçava a autoridade da Igreja, os interesses econômicos e políticos dos coronéis do Nordeste, e a reputação do governo federal.
Canudos calou tão fundo na realidade brasileira que é, possivelmente, o acontecimento mais retratado na literatura. A começar pelo romance Os Jagunços (1898), de Afonso Arinos; Canudos: História em Versos (1898), de Manuel Pedro das Dores Bombinho; Descrição de uma Viagem a Canudos (1899), de Alvim Martins Gorcades, Libelo Republicano (189), de Wolsey; O Rei dos Jagunços (1899), de Manoel Benício; A Guerra de Canudos (1902), de Henrique Duque-Estrada Macedo Soares. E só então a obra máxima, Os Sertões (1902), de Euclides da Cunha. Mas mesmo no exterior rendeu algumas obras, e pelo menos, um grande livro, A Guerra do Fim do Mundo (1980), do prêmio Nobel peruano Mario Vargas Llosa.
Mas todas estas obras têm em comum um forte tom realista, algumas com recorte jornalístico, documental, como que a retratar e dissecar o que foi a comunidade de Canudos e a reação extremamente violenta do governo brasileiro. Pois é justamente no contraponto deste contexto de um realismo, ora laudatório dos vencedores, ora defensor dos oprimidos, que José J. Veiga inova ao apresentar uma nova e surpreendente perspectiva.
Mas não através de sua característica mais conhecida: a de um mestre do fantástico. Aquele que se insinua de forma insuspeita no cotidiano e o transforma completamente através de eventos inusitados, improváveis, absurdistas. Se Veiga usa este recurso para, na verdade, construir uma metáfora do autoritarismo político e desigualdade social no Brasil – como pode ser visto em seus clássicos A Hora dos Ruminantes (1966) e Sombra dos Reis Barbudos (1972) –, em A Casca da Serpente esta verve política permanece, mas sem o elemento fantástico. Mas onde esta a inovação então?
Na sua história de Canudos Veiga envereda pela seara da história alternativa. A premissa é fascinante: o que teria acontecido se o líder Antônio Conselheiro (1830-1897) não tivesse morrido? Se pensarmos bem, até que não era uma grande impossibilidade. Ele poderia ter sido protegido das seguidas investidas do Exército e até um corpo ter sido usado para se fazer passar por ele, e enganar as autoridades. Como sabemos isso não ocorreu e, de fato, ele pereceu. Mas Veiga nos conta como Conselheiro sobreviveu e, mais importante, o que sucedeu a partir daí.
O romance começa nos momentos finais do conflito, quando a quarta expedição do Exército finalmente destrói os insurgentes, depois de sofrer três derrotas humilhantes. Todas as construções foram queimadas e milhares de combatentes mortos de ambos os lados. Os poucos sobreviventes enganam os soldados mostrando um corpo que seria o de Conselheiro. Dá certo, o corpo é levado, degolado e a cabeça exibida como um troféu nas capitais nordestinas. Mas o verdadeiro líder sobrevive, para sua própria surpresa, pois nada havia sido programado.
Antonio Vicente Mendes Maciel, o líder apelidado de Conselheiro, exerceu um profundo carisma junto aos desesperançados do sertão nordestino, assolados pela miséria extrema, a seca, a falta de terra para o cultivo e o desprezo dos governos e da Igreja católica, sempre tão próxima dos poderosos de ocasião. Conselheiro liderou por organizar uma comunidade em torno de valores católicos rígidos, trabalho coletivo e a esperança de salvação num mundo melhor.
Depois da destruição de Canudos os poucos sobreviventes fogem para uma região montanhosa, a fictícia Itatimundé. No início hesitantes sobre o que fazer, se irmanaram na presença carismática de Conselheiro. Pois eles não só se mantiveram unidos como, aos poucos, outros humildes foram chegando. Mas alguma coisa estava diferente. O líder não era mais o mesmo, embora continuasse a receber um respeito quase temeroso por parte do povo.
Conselheiro considerou a sua sobrevivência uma espécie de milagre, e a chance de recomeçar uma vida nova. Não que se arrependesse da experiência de Canudos, mas achava que se ela fora derrotada pelo reino do demônio (a República), era porque Deus não havia visto nela a perfeição que se acreditava.
O líder muda, e reduz as orações constantes, o tratamento reverente, suas vestimentas e até o seu nome. Volta ao seu nome de batismo, admitindo ser chamado apenas de Tio Antonio. De início desconcertados, aos poucos seus seguidores aprendem a viver com este líder mais humilde e parceiro nas tarefas e decisões. Esta nova comunidade, rebatizada de Conferência de Itatimundé, baseou-se em outros princípios e valores, mais igualitários e mesmo anárquicos, embora sempre tendo como referência moral a figura de Conselheiro.
Ainda que não de maneira proposital o fato é que este novo contexto atraiu a presença de figuras diferentes dos desvalidos de então. Visitantes estrangeiros, como os irmãos irlandeses, que permaneceram na nova comunidade e ajudaram-na a se desenvolver; um fotógrafo de prestígio que havia chegado tarde para fotografar a guerra de Canudos; uma cantora chamada Chiquinha, referência à pianista e compositora Chiquinha Gonzaga (1847-1935); um intelectual estrangeiro que, aos poucos, incute em Conselheiro sólidas ideias de teor anarquista, mudando completamente a feição de uma comunidade nascida anteriormente pelo messianismo e fanatismo cristão.
Veiga imagina, assim, a possibilidade de se construir uma comunidade livre no grotão mais miserável do país, com uma nova forma se sociabilidade, marcada pela organização coletiva descentralizada, democratização nas decisões e abolição de hierarquias e autoridades. Sem dúvida, seria um experimento surpreendente e interessante, libertando também o povo miserável da esperança no porvir para construir um mundo viável e justo em nossa própria realidade.
Em termos de enredo, contudo, A Casca da Serpente, carece de dramaticidade, ou mesmo de problematização da nova ordem estabelecida, pois certamente não seria simples construí-la sem que houvesse contestações, ainda mais de um povo que havia vivido uma experiência comunitária tão radicalmente diferente em Canudos. Mas tudo flui com certa tranquilidade, como se, no fundo, qualquer palavra ou iniciativa de Conselheiro valesse por si mesma devido à continuidade do seu carisma, mais forte do que as novas ideias que ele propôs e passou a praticar.
Esta tentativa de edificação de uma comunidade autônoma com valores anarquistas não foi estranha à história brasileira, e também no mesmo período histórico de passagem do século XIX para o XX. Isso porque algumas destas comunidades foram de fato estabelecidas, as mais conhecidas delas, a da Colônia de Guararema (1888) – no interior de São Paulo –, e a Colônia Cecília (1890), no litoral paranaense. Ambas foram criadas por imigrantes italianos, liderados por líderes anarquistas vindos da Itália. Duraram alguns anos, com relativo êxito, antes dos problemas sociais e econômicos prevalecerem, levando às suas dissoluções.
Talvez Veiga tenha se inspirado nelas, mas foi ainda mais ousado, pois a Conferência de Itatimundé, no romance durou décadas, formou-se a partir de um líder religioso que muda radicalmente seus valores, sem grande conhecimento teórico, e em torno de pessoas simples, e de valores religiosos profundamente arraigados, mas dispostos a viver algo novo, pois nada tem a perder. Propõe assim uma experiência social e política muito mais radical e libertadora, sem a dependência de uma crença no além e a exploração do capital. Nesse sentido, A Casca da Serpente nos mostra uma comunidade brasileira extremamente improvável, mas não impossível, desde que se acredite verdadeiramente em relações humanas mais igualitárias, justas e solidárias. Quiçá surja alguma em tempos futuros.

– Marcello Simão Branco

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