sábado, 14 de janeiro de 2017

Páginas de Sombra Contos Fantásticos Brasileiros

Páginas de Sombra: Contos Fantásticos Brasileiros. Edição e apresentação de Braulio Tavares, 167 páginas. Ilustrações de Romero Cavalcanti. Rio de Janeiro: Editora Casa da Palavra, 2003.

Esta foi a primeira das seis antologias que Braulio Tavares organizou para a editora carioca Casa da Palavra até 2015. E é, ao lado de Páginas do Futuro: Contos Brasileiros de Ficção Científica (2011), a mais significativa para a FC&F brasileira, pois se trata de obra de referência e formação de opinião, tanto para especialistas, como para fãs e leitores.
Ao pegar o volume já se percebe que o livro é especial. Não só pelos escritores selecionados, mas também pelo projeto gráfico bonito e arejado, enriquecido por ótimas ilustrações internas para cada história por Romero Cavalcanti.
O livro começa com um ensaio crítico chamado “Nas periferias do real ou o fantástico e seus arredores”, didático e ao mesmo tempo pessoal, apresentando alguns dos elementos centrais da chamada literatura fantástica, enriquecidas com uma interpretação própria do aqui crítico Braulio Tavares. Busca uma definição básica do fantástico, narra um pouco da trajetória e de algumas características do fantástico brasileiro, relacionando em seguida com o Horror e seus próprios pilares, como os fantasmas e o gótico. Para concluir com uma breve, mas instigante reflexão sobre a ausência de florescimento de uma literatura fantástica no Brasil, embora ela seja bem mais praticada em comparação com a ficção científica, por exemplo.
Ele argumenta que talvez seja porque a literatura brasileira ainda seja jovem – como o próprio país, aliás –, e que ela ainda está mais afeita por explicações calcadas no realismo, do que no fantástico, dada a urgência de problemas a serem resolvidos em nossa sociedade. É uma explicação pertinente mas que talvez seja insuficiente, especialmente se considerarmos como o Brasil vem mudando nestes últimos 25 anos, com uma profunda mudança em sua estrutura industrial e socioeconômica sem, contudo, alterar seu quadro de desigualdade social. E isto trouxe, será por coincidência?, em seu rastro, uma Segunda Onda da ficção científica, que tem sido a mais militante, produtiva e de melhor qualidade em comparação com qualquer outro momento histórico em nossa literatura, ainda que de alcance restrito no conjunto das letras nacionais.
De qualquer forma, uma antologia como esta ajuda a contextualizar o cenário histórico e recuperar algumas joias esquecidas (ou pior) não conhecidas pelos fãs mais jovens de ficção científica e literatura fantástica.
Assim, este livro traz 16 histórias que vão de 1884 a 1995, cobrindo praticamente um século de produção. Obviamente, toda escolha é arbitrária mas o organizador Braulio Tavares procurou, até onde foi possível, equilibrar o gosto pessoal com a representatividade de uma história ou de seu autor. E estas duas características ficam explícitas na pequena introdução a cada história, onde o organizador já apresenta o autor e sua relação com o fantástico, bem como em que a sua literatura em geral dá mostra, ainda que implicitamente, de insights e especulações nada realistas.
O poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade abre a antologia com a despretensiosa “Flor, Telefone, Moça”, de 1951. Tem uma narrativa bela, melancólica e surpreendentemente sobrenatural, no relato de uma moça que retira uma flor de um jazigo e passa a receber estranhos telefonemas. O produtor e antologista da TV americana Rod Serling (1925-1975) certamente ficaria interessado em filmar o conto para uma de suas séries – Além da Imaginação ou Galeria do Terror – caso viesse a ler a história.
O conto a seguir é “A Podridão Viva”, de autoria de Amândio Sobral, um dos escritores esquecidos que são recuperados neste livro. A história, publicada originalmente em 1934, tem um clima bem construído, situando a ação no interior profundo de uma inexplorada e distante floresta africana. Uma das regiões mais exóticas do planeta – naquela época – e ainda hoje. O impacto dos detalhes da expedição e da aparição são muito reforçados pela adjetivação e pelo choque emocional sofrido pelo protagonista.
“Teleco, o Coelhinho” é o conto seguinte, assinado por um dos grandes fantasistas brasileiros, Murilo Rubião. Nesta história de 1965, uma fantasia em estilo clássico, muito bem narrada, com vívida imaginação e sentido alegórico. A situação absurda que se insere no cotidiano e passa a com ele conviver tem aqui um relato dramático e triste, mostrando personagens solitários em busca de compreensão e amizade.
Já o conto seguinte é de Berilo Neves, um escritor best-seller da literatura brasileira dos anos 1930, hoje também relegado ao pó das estantes e à leitura eventual de um pesquisador mais dedicado. Um deles, o escritor Roberto de Sousa Causo contribuiu para dirimir um pouco este ocaso, publicando uma edição temática sobre ele no seu fanzine Papêra Uirandê, há alguns anos. Em todo caso, “A Última Eva” é mais um esforço de recuperação de um autor realmente curioso. Sua ficção científica não é mais do que sátiras relativamente superficiais sobre casais apaixonados em suas andanças pelos planetas do Sistema Solar.
Porém a esta aparente ingenuidade se insere uma temática extremamente machista e misógina, tal como mostrado neste conto, onde uma misteriosa epidemia varre as mulheres do mundo, num tema relativamente frequente na ficção científica como, por exemplo, no instigante e irregular romance O Planeta Esparta, do americano A. Bertram Chandler, publicado no Brasil nos anos 1970, pela editora Nosso Tempo. No fim das contas, a presença de Berilo Neves se justifica mais por sua representatividade histórica do que por sua qualidade temática ou literária, exemplificado neste conto com um enredo forçado tanto no humor, quanto no desdobramento das situações.
Lília Aparecida Pereira da Silva é outra autora relativamente esquecida que dá as caras no livro com o curtíssimo “A Máquina de Ler Pensamentos”. Não muito mais do que uma espécie de variação feminina para o monstro de Frankenstein, com semelhantes descrições do que Braulio Tavares chama de ‘ciência gótica’ para textos deste tipo. Bizarro e com boa ambientação, não vai além da intenção de ser uma história efetiva, sendo verdadeiramente nada mais do que uma vinheta.
O que não é o caso, absolutamente, da história a seguir. Simplesmente “A Escuridão”, o maior clássico da ficção científica brasileira. André Carneiro consegue, com este texto de 1963, se ombrear com o que de melhor já se fez neste gênero em um nível internacional – tanto que é o seu texto mais publicado mundo afora.
Repentinamente as luzes desaparecem e a civilização mergulha nas trevas. Wladas procura primeiro entender o absurdo, para aos poucos lutar desesperadamente para superá-lo. Como aponta Braulio Tavares, o estilo distanciado e atemporal só acentua a estranheza da narrativa, bem como sua intensidade humana e dramática. A história tem uma fluidez demorada, outra peculiaridade que transmite uma sensação de angústia não só aos personagens, mas também ao próprio leitor. Um texto realmente bem escrito, em seus detalhes, primoroso no tratamento dos personagens e com um final inesquecível. Disparada a melhor história deste volume.

O maranhense Coelho Neto foi colocado depois da obra-prima de Carneiro, o que dificulta uma boa avaliação de sua história – aliás, como seria com qualquer outra das histórias desta antologia. Em todo caso, Coelho Neto é um dos mais notórios esquecidos da literatura brasileira, extremamente influente entre seus pares, e prolixo em seu tempo, da segunda metade do século XIX até as três primeiras décadas do século passado.
Seu romance A Esfinge (em 1908 foi lançada a primeira edição. A edição que eu tenho é da editora Lello & Irmão, Porto, 1925), deveria ser procurado e lido, pois é uma história forte e interessante, sobre um homem que recebe o transplante da cabeça de uma mulher, numa variação curiosa da chamada ‘ciência gótica’ à lá Frankenstein. Para esta antologia, Braulio selecionou o conto “A Casa ‘Sem Sono”, uma narrativa bem escrita e de tema misterioso, numa especulação diferente ao tema da casa assombrada. Poderia render mais, se tivesse explorado mais as situações apresentadas.
"A Gargalhada", de Orígenes Lessa, mostra como uma situação banal se transforma de forma inexplicável e surpreendente em fantástica. Uma risada generalizada, ininterrupta e coletiva acaba por se transformar num inusitado horror. Vale conhecer, ainda que como referência para a ficção científica, sua novela A Desintegração da Morte (1948, publicado, entre outras edições, pela Futurâmica, número 568), seja o seu texto principal e conhecido.
Adelpho Monjardim, outro autor pouco lembrado nos dias que correm, é ‘redescoberto’ neste livro com “O Satanás de Iglawaburg”, um conto que lembra bem o estilo das weird fictions publicadas nas pulp magazines norte-americanas dos anos 1930 e 1940. O conto tem um estrutura gótica assumida, com resquícios reconhecíveis de Edgar Allan Poe e seu clássico “A Queda da Casa de Usher”. Obviamente, a qualidade literária do autor capixaba fica a anos-luz do norte-americano de Boston, mas o mais importante neste caso, é que a narrativa tem um bom nível de entretenimento, envolvendo o leitor e mostrando um horror que se assume muito mais no plano psicológico do que no sobrenatural.
Uma situação semelhante ocorre no conto seguinte, “As Academias de Sião”, de Machado de Assis. Só que aqui o fantástico explícito se traveste de situações alegóricas, um recurso muito usado pelo autor em suas intermitentes incursões ao fantástico. A intenção inicial, no caso, é satirizar as acadêmicas literárias e científicas, tão em voga em fins do século XIX, mas o conto acaba tendo mais efetividade na situação prática vivida pelos dois personagens principais. Pois eles resolvem ‘trocar’ se sexo: um rei passa a ser mulher e uma rainha assume o papel masculino dentro da trama. Contudo, ainda que seja interessante pelo fato de ser de Machado de Assis, a história não consegue ser nada além de chata e mal concatenada em seus objetivos temáticos.
O que não é o caso do texto de Rubens Figueiredo, a noveleta “O Caminho do Poço Verde”. Partindo de uma premissa simples, temos o choque civilizatório do ‘interior profundo’, na experiência de uma mochileira. A história é rica em seus detalhes, como a descrição da natureza, das pessoas do meio rural e seus costumes rudes, sua linguagem peculiar – que por vezes, beira a dialetos nesse ‘brazilsão' interminável e desconhecido –, sua interação quase mágica com crenças oriundas do imaginário da natureza. É interessante também o fato de que todos os personagens ativos são mulheres: da viajante Diana às ‘bruxas’ do mato. E o tal do Aruê, é um mal que não se anuncia, mas se pressente, em meio a uma atmosfera sobrenatural que se acentua paulatinamente. E para fechar, temos o tal do ‘poço verde, como um lugar mítico, onde o mal pode ser derrotado.
Publicado originalmente em 1994 na coletânea O Livro dos Lobos – conforme é informado na introdução da história –, poderia ter disputado fortemente o então Prêmio Nova. Dado o desconhecimento do fandom, a história só agora nos chega e se coloca como uma das melhores histórias curtas do gênero fantástico publicadas no Brasil em 2003.
Depois de uma travessia intensa e surpreendente com a noveleta de Figueiredo, a próxima história – como já havia ocorrido com o conto que sucedeu a obra-prima de André Carneiro –, de saída sai prejudicada. Mas desconfio que neste caso nada poderia ajudar a melhorar a condição de “Íblis”, de Heloísa Seixas. Contando basicamente a história de uma pesquisadora vítima de uma maldição, o texto peca por ser muito empolado. Seixas sabe escrever, mas transmite um pedantismo e uma futilidade à flor da pele, de tal forma que passei a torcer pelo destino funesto da personagem. A história mais fraca de todo o livro.
Justamente (quase) o oposto do conto de Lygia Fagundes Telles, “As Formigas”. Um conto muito bem construído em sua trama e desenvolvimento, bem como na ambiguidade entre o real e o irreal que transmite, gerando uma situação de indeterminação, tanto no leitor, como nos próprios personagens. O mistério propriamente dito está por se insinuar – e recuar –, para depois se insinuar de novo, de forma mais sutil e efetiva, especialmente no trecho final da história. Competente.
Já a palavra para definir de saída o conto seguinte é sofisticação. Num texto muito bem trabalhado, tanto na forma, como nas imagens que transmite o “Luvibórix”, de Carlos Emílio Corrêa Lima, tem uma narrativa que provoca estranhamento não apenas pelo tema em si, mas pela prosa intrincada e caprichada que estrutura a história. Mesmo assim, do ponto de vista de uma narrativa mais fluente e que pede certa linearidade causal, o texto não consegue se completar, ficando a sensação conclusiva de uma prosa sofisticada sim, mas sem um objetivo temático claro.

Humberto de Campos é outro autor recuperado pelo organizador da antologia, e que era, em seu tempo, possivelmente o mais popular e produtivo escritor brasileiro. Em “Os Olhos que Comiam Carne”, estamos diante de um tema muito bem explorado por um cineasta igualmente produtivo, o americano Roger Corman que produziu e dirigiu em 1963, o clássico B, O Homem dos Olhos de Raio X, numa interpretação classe A de Ray Milland. Se você já viu este filme, poderá esperar do conto de Campos uma temática e – principalmente –, um desfecho parecido. Mesmo sendo um motivo a menos para se surpreender, o texto vale uma lida pela maneira própria e singular que o autor brasileiro concebe uma interpretação para a história.
E fecha a antologia um clássico do horror brasileiro, “Demônios”, de Aluísio Azevedo. De um escritor que é considerado um dos principais expoentes do Naturalismo li, nos tempos do então Segundo Grau – atualmente Ensino Médio –, dois de seus principais livros dentro desta vertente, O Mulato (1881) e O Cortiço (1890). E depois de tantos anos, me recordo do quanto fiquei impressionado especialmente d’O Cortiço, pela verossimilhança dos personagens e pelo esforço bem-sucedido de ambientação social realizada pelo autor.
Já neste conto, temos a inversão desta lógica naturalista. Os caminhos aqui se esvaem de explicações cartesianas, vislumbrando um ambiente sombrio, nada aprazível. Numa narrativa carregada fortemente de dramaticidade, temos a construção de um complexo e profundo pesadelo, com a inevitável – porém descartável –, ‘pegadinha’ no fim. De novo, aqui – e bem antes do ponto de vista histórico, diga-se –, temos mais uma variação do ‘mundo da escuridão’, onde se dá total e inexplicável ausência de luz. E há momentos marcantes, como a sequência das transformações físicas, impressionando e causando um eficaz sense of horror.
Páginas de Sombra: Contos Fantásticos Brasileiros é uma antologia da melhor qualidade em seu conjunto, fazendo frente a uma dos mais difíceis desafios a toda antologia: equilibrar a qualidade média das histórias. Goste-se mais ou menos de um texto, mais ou menos de um autor, a concepção da obra atinge seus objetivos de passar uma idéia geral da história e das principais características do chamado ‘fantástico’ feito no Brasil.
Contudo, dois tipos de ausência chamam a atenção. Embora a seleção dos autores tenha sido, em geral, bastante criteriosa, causa espanto que dois autores maiúsculos da literatura brasileira não apareçam: José J. Veiga e Guimarães Rosa. Quero crer que Braulio Tavares os selecionou, o problema deve ter sido com os direitos autorais. Veiga é um prosador e contista do mais alto nível – e diretamente voltado ao fantástico – e Rosa, além de ser um dos grandes nomes da literatura brasileira de qualquer época, também se exprimiu em histórias fantásticas a certa altura de sua carreira. Aliás, o próprio Braulio tem se encarregado de divulgar esta temática do autor, publicando ensaios em jornais e fanzines sobre o assunto.
A outra ausência é a de nenhum escritor do chamado fandom literário de ficção científica destes últimos 20 anos. Braulio Tavares até justificou, dizendo que inicialmente havia pensado em incluir um ou outro autor. Poderia, até para evitar o equívoco de incluir um conto ruim como “Íblis”, por exemplo. Duas boas histórias fantásticas que não fariam feio neste livro: “Aprendizado” (1993), de Carlos Orsi Martinho e “A Nuvem” (1993), de Ricardo Teixeira. Isso para não recomendar histórias do próprio Braulio, que ele já publicou ou poderia escrever. Fica para outra oportunidade uma nova versão desta antologia, que inclua os autores brasileiros contemporâneos.

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