segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Do Outro Lado do Sonho

Do Outro Lado do Sonho (The Lathe of Heaven), Ursula K. Le Guin, 169 páginas. Tradução de Maria Amélia Silva. Capa de Arcângela Marques. Lisboa: Edições 70 – Coleção Orion Clássicos da Ficção Científica, n. 3, 1991.

Do que são feitos os sonhos? Qual sua relação com a realidade, tal qual a conhecemos e percebemos? E o que falar da própria realidade? No fundo não temos certeza por onde andamos e sob que concretude estamos assentados.
Destas profundas e recorrentes perguntas, que todos já nos fizemos algumas vezes, trata o romance Do Outro Lado do Sonho (The Lathe of Heaven), da Ursula K. Le Guin. Livro publicado originalmente em 1971, que nos mostra a autora no auge, em pleno exercício de sua prosa e de sua criatividade.
Foram publicadas duas edições em Portugal. Esta ao qual tomei por base para esta resenha, e O Flagelo dos Céus, número 64 da coleção Europa-América. E vale lembrar que o romance ganhou uma versão para o cinema em 1980, dirigida pela dupla David Loxton e Fred Barzik, finalista do Prêmio Hugo de 1981.
George Orr é um sujeito atormentado, sem paz. Ele sonha. E dos seus sonhos criam-se novas realidades, das quais ele é o único elo com a realidade passada. Em desespero, passa a drogar-se, é internado e lhe recomendam um tratamento voluntário com um psiquiatra, um especialista em sonhos.
Logo após a primeira sessão, a realidade já estava alterada. No lugar de um quadro do Monte Hood que antes estava na parede do consultório, encontra-se agora o quadro de um cavalo, conforme lhe fora recomendado a sonhar pelo Dr. Haber. A partir daí, de sessão em sessão as transformações irão se acentuar de maneira radical. Isso porque George percebe que o Dr. Haber é testemunha das modificações que ele faz ao mundo, com seu sonho. O perturbado sonhador procura a ajuda de uma advogada. Ela comparece a uma sessão com o pretexto de atestar a idoneidade do tratamento do doutor, mas acaba por testemunhar também o nascimento de um novo e radical mundo: da janela do consultório, onde antes olhava imponentes edifícios da metrópole de Portland, via-se agora uma paisagem bucólica com casas modestas e muita vegetação.
O Dr. Haber potencializa os sonhos de George usando uma máquina que ele chama de aumentador. Hipnotisa o paciente, conecta eletricamente o seu cérebro com o amplificador de sonhos, e transforma em nova realidade seus mais desvairados desejos e visões de mundo. Tenta transformar a realidade em suas utopias, terminando com as guerras, com o racismo. Mas os efeitos colaterais são terríveis e desestruturam as vidas de milhões de pessoas, suas memórias, seus destinos e suas existências. Até a figura de extraterrestres benevolentes vindos de Aldebarã cabe em seus delírios a fim de acomodar seus projetos de reconstrução do mundo.
Mas George continua sonhando e mudando a realidade. Só que agora de forma induzida e controlada, servindo de instrumento para um cientista que quer se fazer de Deus. Ele procurará se insurgir contra o Dr. Haber, nem que com isso nada reste de qualquer fiapo, qualquer noção de continuidade entre um sonho e uma realidade e desta para uma próxima realidade.
Le Guin imprime um bom ritmo ao texto, não se voltando para uma interpretação mais densa e complexa da natureza do sonho e da realidade, procurando deixar a própria narração dos acontecimentos falar por si. Nem a fonte do poder de George para modificar a realidade nos é explicada. Cabe ao leitor, então, mergulhar nas mais livres interpretações sobre as conseqüências dos acontecimentos da história, bem como se voltar à procura de uma compreensão da relação que pode existir de fato entre sonho e realidade.
George é um sujeito sem paz. O mundo não tem paz. Haber se entusiasma de forma megalômana e passa a dispensar George. O cura: pede para ele sonhar que não terá mais sonhos com modificações da realidade. O próprio Haber se conecta ao aumentador e passa a transformar a realidade a partir de seus sonhos. O mundo entra em colapso. Das cinzas, a sociedade é reconstruída, e George conforma-se em viver e deixar viver. Sem tentar entender o que, de fato, não pode ser entendido em sua plenitude. Mas George ainda está amargurado e sem paz. O alívio lhe aparece no fim da história quando reencontra a advogada, por quem se apaixonara e casara em uma outra realidade. A cena final é de forte simbolismo, com Le Guin nos deixando habilmente a indagação do que terá sido do mundo e da vida de George Orr. Seja em que realidade for. Uma história marcante e inesquecível.

– Marcello Simão Branco


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