segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Contos Amazônicos, Inglês de Sousa

Contos Amazônicos, Inglês de Sousa. Edição preparada por Sylvia Perlingueiro Paixão. São Paulo: Editora Martins Fontes, coleção Contistas e Cronistas do Brasil, n. 4, 2005, 205 páginas. Lançado originalmente em 1893.

     Já tinha ouvido falar de Inglês de Sousa (1853-1918) das aulas de Literatura Brasileira no agora ensino médio, e lá se vão trinta anos, como um dos expoentes da chamada fase Naturalista. Mas não imaginava que iria lê-lo numa outra perspectiva, a do fantástico e sobrenatural.
Acabei topando com Sousa por causa de seu conto “Acauâ”, publicado na antologia A Palavra é... Mistério, organizada por Ricardo Ramos, pela editora Scipione, em 1988. Neste conto há uma narrativa que inicialmente impressiona pela descrição do medo de um sujeito que se perde na floresta ao tentar voltar para casa à noite sob uma tempestade. Gradativamente, porém, depois de achar um bebê recém-nascido à beira do rio, o fantástico se insere, de modo sinuoso, porém impactante. Para quem conhece as lendas regionais da Amazônia já se intui o possível desdobramento sobrenatural, a partir do canto do pássaro Acauâ, considerado de mau agouro.
“Acauâ” é um dos pontos altos de Contos Amazônicos, coletânea completada por mais oito histórias: “Voluntário”, “A Feiticeira”, “Amor de Maria”, “O Donativo do Capitão Silvestre”, “O Gado do Valha-me-Deus”, “O Baile do Judeu”, “A Quadrilha de Jacó Patachó” e “O Rebelde”.
Como observa Sylvia Perlingueiro Paixão na introdução, a leitura sucessiva das histórias forma um mosaico, como se estivessem interligadas. Contudo, não é possível considerar o livro como um romance fix-up, porque não há um encadeamento formal dos temas e nem repetição de personagens.   O mosaico se dá em outros sentidos, principalmente no equilíbrio entre os problemas sociais e políticos do povo amazônico do final do século XIX e sua íntima conexão imagética com a natureza.
Embora não seja explícita, a veia naturalista da obra se revela na observação, por vezes crítica, da condição marginalizada do índio e do caboclo em face da opressão do branco de origem portuguesa, dono das terras e senhor do destino político da região. Pois nesta condição de desamparo, ao lado da proximidade com a natureza profunda de uma floresta imensa em tamanho e incontrolável em sua fauna, rios e flora, se manifestariam fenômenos inexplicáveis,  sobrenaturais, próprios de um mundo à parte da civilização.
Há de um lado narrativas dramáticas e verossímeis a respeito das penúrias da vida do povo oprimido, quase como se fosse um documento. Cito em especial a noveleta “Voluntário” e a excelente novela “O Rebelde”. A primeira sobre a violência do recrutamento militar compulsório para a Guerra do Paraguai (1865-1870). Os caboclos em meio a uma vida pobre, mas simples e previsível, são surpreendidos com um conflito distante e que nada diz à sua realidade. A segunda gira em torno do levante social da Cabanagem (1835-1840), uma das revoltas sociais de meados do século XIX e das poucas com caráter realmente popular. A história é contada por um advogado que relembra como Paulo da Rocha, um rebelde de outro conflito, o de Pernambuco em 1817, que antecedeu a luta pela emancipação política do Brasil, o salvou de ser assassinado pelos cabanos, já que ele era filho do juiz da cidade, um dos símbolos do autoritarismo dos poderosos sobre o povo simples. Conhecido pela população humilde como “velho de outro mundo”, por causa de sua fama de revolucionário, comportamento arredio aos costumes locais, seu exílio na floresta e postura altiva frente aos poderosos, conduzirá uma narrativa que se insinua como sobrenatural, mas se desenvolve como um comentário objetivo sobre a emergência da cabanagem, que tornou explícita a desigualdade, injustiça e sede de vingança do nativo frente ao que eles mesmos chamavam, de forma pejorativa, de brasileiros. Isso porque representavam o povo português, ou descendente deste, urbano, educado e opressor do caboclo e dos índios.
De outro lado Sousa solta sua imaginação com narrativas fantásticas e sobrenaturais. Casos do já citado “Acauã”, além de “O Baile do Judeu” e o “Gado de Valha-me-Deus”. O ponto central é a situação surpreendente, que pede uma explicação racional (naturalista), mas se rende ao insólito. Como no caso da mudança de feição física e comportamental provocada pelo canto do pássaro; pela aparição da figura do boto que, transformado em homem, seduz e rapta as mulheres, ou ainda pela busca de cabeças de gado em que se ouve os mugidos e observa-se os rastros, mas não há avistamentos. Este último conto é especialmente interessante.
Para a organizadora da coletânea, Inglês de Sousa não se coloca como crítico nas histórias de temática social, e narra as crenças e misticismos do povo da floresta numa tentativa de explicá-los racionalmente, por meio da argumentação racional e da justificativa da ignorância do povo. Por um lado é fato que nas histórias que tratam do contexto social da época os acontecimentos exteriores mostram por si o drama e as injustiças da situação, sem uma análise mais detida sobre as situações. Contudo, creio que o autor usa de um artifício elegante para sim apontar as mazelas sociais e políticas, por meio da narração fluente e pela ação conduzidas por personagens críveis e densos, de onde se extrai a força das histórias.
Já do ponto de vista da crítica ao misticismo do tapuio e do caboclo, resultado de sua condição pré-civilizatória, este naturalismo não se afirma da mesma maneira em todas as histórias. Nas acima citadas, por exemplo, é como se os eventos fantásticos, que surpreendem e aterrorizam tivessem sim um lugar não só no imaginário, mas na realidade dos povos da floresta, embora eles não tivessem como explicar racionalmente os fenômenos. Já em outros contos como “A Feiticeira” e “Amor de Maria”, as crendices são mostradas e confrontadas com o chamado saber objetivo e racional, mostrando como a permanência de crenças e comportamentos sobrenaturais ajudam a explicar em parte a tragédia da vida dos mais simples.
Nesta surpresa agradável que foi descobrir estes Contos Amazônicos, podemos situá-lo entre os melhores que já abordaram a região amazônica na literatura especulativa brasileira, mesmo que algumas histórias não tenham elementos fantásticos ou sobrenaturais. Na verdade há um pequeno conjunto de obras interessantes sobre a região, a começar pelo clássico de ficção científica e aventura A Amazônia Misteriosa, de Gastão Cruls, escrito em 1925. Também podemos lembrar, entre outras, de A Cidade Perdida (1948), de Jerônymo Monteiro, A Ordem do Dia, de Márcio Souza (1983), estas de FC, e uma que se aproxima em termos de gênero aos contos de Sousa, o romance de fantasia sombria, A Mãe do Sonho (1990), de Ivanir Calado. Mais recentemente temos o que podemos chamar de “Trilogia Amazônica” de Roberto de Sousa Causo: Terra Verde (1999), O Par: Uma Novela Amazônica (2005) e Selva Brasil (2010).  Como se vê um bom conjunto de obras, mas em termos contemporâneos há muito a explorar.
Neste contexto Contos Amazônicos é uma coletânea pioneira da literatura brasileira em geral, e especulativa em particular, sobre a seara amazônica, e contribui para isso também a qualidade narrativa do autor. Pois talvez a maior virtude de Inglês de Sousa é sua prosa limpa, objetiva, socialmente crítica, com personagens atuantes e descrições de cenas e imagens bastante competentes. Por tudo isso é um livro que deve ser conhecido tanto pelo leitor de FC&F, como aquele interessado na compreensão mais miúda da realidade brasileira na virada do século XIX para o XX, especialmente da perspectiva da região amazônica, cujos efeitos estão presentes ainda hoje, dado o grau de desigualdade social e carência que ainda ocorre nesta região do país.


– Marcello Simão Branco

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