domingo, 29 de março de 2015

A Maldição da Chorona (La Maldición de la Llorona, México, 1963)


O cinema antigo de horror mexicano tem algumas preciosidades que não podem ficar esquecidas. Essa é uma produção de 1961, porém lançada dois anos depois, com fotografia em preto e branco, dirigida e escrita por Rafael Baledón, a partir de uma história de Fernando Galiana, que por sua vez utilizou elementos de uma lenda popular sobre uma mulher fantasma que chora de forma assustadora.
Na história do filme, a jovem Amelia (a venezuelana Rosita Arenas, de “La Momia Azteca Contra el Robot Humano” / “The Robot vs. The Aztec Mummy”, 1958), recém casada com Jaime (Abel Salazar, de “El Barón del Terror” / “The Brainiac”, 1962), recebe o convite para visitar sua tia Selma (Rita Macedo), que não vê há 15 anos e que mora solitária num casarão afastado no meio de uma floresta. A casa de aspecto sombrio é conhecida na região por ser assombrada e temida pelos moradores das aldeias próximas por causa da ocorrência misteriosa de assassinatos noturnos na estrada em seus arredores, cuja autoria é investigada sem sucesso pelo capitão da polícia local (Mario Sevilla), e onde as vítimas são encontradas sem sangue. Chegando ao destino, o casal é recebido pelo rude serviçal Juan (Carlos López Moctezuma), manco e com o rosto desfigurado. No encontro da jovem Amelia com sua tia Selma, logo é informada a real intenção do convite, com a revelação da existência de uma maldição familiar envolvendo a antiga bruxa maléfica Marina, que renegou todos os seus bens e adquiriu um poder sobrenatural das trevas. Ela foi executada com uma lança no peito, e ficou conhecida como “a mulher chorona”, devido seus gritos aterrorizantes de agonia (daí o título original). Seu cadáver apodrecido está escondido no porão da casa, aguardando apenas a oportunidade de ressurgir entre os vivos. E como elas eram suas únicas descendentes, a ideia seria reviver a feiticeira num ritual de magia negra, no aniversário de 25 anos de Amelia, cujo presente seria o seu sacrifício, dando a vida para trazer a antiga bruxa de volta.
A Maldição da Chorona” é uma pérola do cinema gótico com todas as suas tradicionais características de um horror sutil, mas extremamente eficiente na elaboração de uma atmosfera sombria e sinistra. Temos a carruagem como meio de transporte da época, tornando sempre árdua e demorada a tarefa de se locomover; a floresta com árvores secas e aspecto fantasmagórico envoltas numa tenebrosa névoa espessa; e o casarão frio e deprimente de pedra, repleto de passagens secretas e ambientes tétricos, decorado por teias de aranha, habitado por ratos e morcegos e protegido por imensos cães assassinos, que mais parecem guardiões dos portais do inferno. Estão também presentes aqueles esperados clichês que contribuem de forma decisiva para a construção de um clima mórbido como o serviçal demente com o rosto desfigurado; o porão sinistro que esconde um segredo aterrador; e a música tétrica de um órgão tocando acordes de gelar a espinha. Além de um espelho mágico que reflete a personalidade sombria escondida na jovem Amelia, que é vítima de uma maldição familiar; um alçapão que serve de inesperada armadilha; e os gritos estridentes de uma mulher chorona ecoando pelos corredores do casarão. Sem contar a presença de um homem preso no sótão, deformado pela loucura (no caso, é o marido de Selma, o Dr. Daniel Jaramillo, interpretado por Enrique Lucero, e que perdeu a sanidade nos anos forçados de reclusão, vivendo como um animal). A maquiagem da maléfica Selma, quando transformada em bruxa, com o rosto modificado simulando a região dos olhos como escuras cavidades vazias, é um dos pontos fortes do filme, passando a sensação do Mal absoluto.
Curto, com apenas uma hora e quinze minutos de duração, e com uma constante atmosfera de tensão e horror sugerido, “A Maldição da Chorona” é recomendável para apreciadores do cinema gótico e histórias de bruxas e maldição familiar, e para quem procura por produções antigas (nesse caso, da década de 60 do século passado) fora do tradicional mercado americano ou europeu.     
(Juvenatrix - 29/03/15)




sábado, 28 de março de 2015

O Monstro de Vênus (Zontar, the Thing From Venus, 1966)


Direção de Larry Buchanan. Keith Ritchie (Anthony Huston) é um cientista brilhante que inventa um sofisticado equipamento capaz de se comunicar com o distante planeta Vênus. Paralelamente, um importante projeto militar chefiado pelo também cientista Dr. Curt Taylor (John Agar), consiste em lançar ao espaço um satélite a laser. Ao se comunicar com Vênus, Keith entra em contato com uma criatura chamada Zontar, que utiliza o satélite para se transportar até a Terra. Ele acredita que está fazendo algo para o bem da humanidade, ou seja, um contato com uma raça alienígena superior que nos ajudaria a acabar com as guerras e problemas de nosso planeta. Porém, as intenções de Zontar são hostis, com objetivos de conquista num plano de invasão para sugar a energia do planeta e que consiste em controlar autoridades através de um sensor colocado em suas cabeças por morcegos venusianos. Dessa forma, resta apenas a tentativa da bela esposa de Keith, Martha Ritchie (Susan Bjurman), em alertar o marido sobre o equívoco em ajudar Zontar, e também do amigo Dr. Curt Taylor, que logo percebe o plano maquiavélico do alienígena e parte para o confronto para salvar a humanidade.
O Monstro de Vênus” é uma refilmagem de “It Conquered the World” (1956), dirigido por Roger Corman e com Peter Graves, Beverly Garland e Lee Van Cleef. Foi lançado em DVD junto com “A Primeira Espaçonave em Vênus” (1960), e tem a participação do ator John Agar (1921 / 2002), conhecido por interpretar geralmente “cientistas loucos” em inúmeros filmes “B” de horror e ficção científica como “Revenge of the Creature” (1955), “Tarantula” (1955), “The Mole People” (1956), “The Brain From Planet Arous” (1957), “Attack of the Puppet People” (1958), “Invisible Invaders” (1959), “Journey to the Seventh Planet” (1962), “Women of the Prehistoric Planet” (1967), entre outras pérolas do cinema fantástico de baixo orçamento. O filme é uma tranqueira de proporções colossais, desde a produção paupérrima, passando pelo roteiro superficial, até os efeitos especiais bagaceiros, como o satélite a laser (um típico disco voador), os “injectopods” (uma espécie de morcego alienígena ridículo cujas cenas dos ataques em vôos rasantes são hilários de tão mal feitos), e o próprio Zontar, um monstro com três olhos e um par de asas, que está entre os mais bizarros vilões dos filmes sobre invasão alienígena. Na história, percebemos referências a clássicos da ficção científica como “O Dia Em Que a Terra Parou” (1951), quando Zontar paraliza o planeta, interrompendo todos os serviços de fornecimento de água, luz, telefone e máquinas em geral, instaurando o pânico na população desorientada, e “Vampiros de Almas” (1956), ao controlar as pessoas através de um sensor instalado na nuca, transformando-as em seres obedientes, artificiais e desprovidos de emoções. Como a maioria dos filmes do período, o roteiro também explora a tensão da guerra fria, alegando que o corte de energia seria uma sabotagem comunista, e que as pessoas controladas por Zontar seriam frias e insensíveis.
(Juvenatrix - 12/11/09)

quarta-feira, 25 de março de 2015

Gammera - O Monstro Invencível (Gammera the Invincible, EUA, 1966)


Direção de Noriaki Yuasa e Sandy Howard. Em plena época de grande tensão mundial com a guerra fria, um navio de pesquisas japonês está no polo Ártico, próximo da fronteira com a Sibéria. Eles avistam um grupo de aviões russos fora de seu espaço aéreo e os Estados Unidos são alertados para interceptar os intrusos, causando um incidente internacional com a derrubada de um dos aviões inimigos, que carregava uma bomba atômica, explodindo a geleira e libertando um monstro gigantesco que hibernava por 200 milhões de anos. A criatura ancestral, com uma altura de cerca de 50 metros, é semelhante a uma tartaruga dinossauro, conhecida em lendas como “Gammera”, que cospe fogo pela boca e tem a capacidade de voar. O monstro gigante logo ataca o navio e parte pelo oceano em direção ao Japão, destruindo tudo pelo caminho, despertando a atenção mundial para um trabalho cooperativo internacional entre os exércitos de vários países na tentativa de deter o monstro. Uma vez que ele se mostra invulnerável ou “invencível” como diz o subtítulo do filme, não cedendo aos ataques maciços com armas de todos os tipos (inclusive nucleares), além de vapores quentes de uma usina geotérmica e até bombas congelantes, a esperança da humanidade está num misterioso “Plano Z”, mantido em sigilo pelas “Nações Unidas”. O objetivo é atrair a tartaruga gigante para uma ilha japonesa, que esconde um segredo que pode acabar com sua ameaça.
Em 1965 foi produzido um filme japonês com o monstro “Gammera”, que um ano depois se transformou numa versão lançada pelos Estados Unidos, incluindo apenas algumas cenas adicionais e atores americanos como Albert Dekker (do clássico “O Delírio de Um Sábio”, 1939), que fez o Secretário de Defesa, Brian Donlevy (de “A Maldição da Mosca”, 1965), que interpretou o General Terry Arnold, e Dick O´Neill (General O´Neill). A partir de então, a tartaruga gigante que cospe fogo passou a participar de inúmeros filmes, principalmente na década de 60 e início dos anos 70. Os famosos monstros gigantes japoneses como Godzilla e outros similares, se transformaram num subgênero do cinema bagaceiro de horror muito cultuado pelos fãs, e são tantos filmes produzidos dentro desse tema que é difícil catalogar. Geralmente utilizando argumentos inspirados pela paranóia da guerra fria entre Estados Unidos e União Soviética, e o medo das consequências do uso de armas atômicas para o futuro da humanidade. Foi lançado em DVD num programa duplo com “O Alerta do Espaço” (1956).
(Juvenatrix - 12/11/09)

Destruam Toda a Terra (Destroy All Planets, Japão, 1968)


Direção de Noriaki Yuasa. Uma nave alienígena hostil quer dominar e colonizar a Terra. Sua forma é um conjunto de esferas amarelas com listras pretas, e os invasores são criaturas com tentáculos disfarçadas de humanos. Uma dupla de jovens escoteiros, o japonês Masao Nakaya (Tôru Takatsuka) e seu amigo americano Jim Crane (Carl Craig), são especialistas em fazer trotes e brincadeiras, como o que fizeram com um pequeno submarino projetado pelo cientista Dr. Dobie (Peter Williams), cujos controles foram invertidos, e são sempre repreendidos pelo chefe dos escoteiros, Sr. Shimida (Kojiro Hongo). Porém, as crianças não imaginariam a encrenca em que iriam se meter quando são sequestradas pelos alienígenas, despertando a fúria do monstro protetor Gamera, uma tartaruga imensa que voa e solta fogo pela boca, que parte furiosa na salvação dos meninos. Na batalha, os alienígenas conseguem instalar um mecanismo de controle cerebral no monstro, obrigando-o a se voltar contra os humanos, destruindo uma represa e uma usina elétrica, ameaçando a segurança de Tóquio, a capital do Japão e a cidade preferida para os mais diversos monstros atacarem.
Lançado em DVD pela “Works” num programa duplo com “A Batalha dos Monstros” (1969). Aqui, temos novamente outro filme com Gamera, tão ruim quanto os demais, com efeitos especiais paupérrimos e uma história básica cheia de furos e muito similar ao filme seguinte da série, demonstrando a falta de criatividade dos roteiristas, fazendo com que os filmes de monstros japoneses se pareçam demais uns com os outros. Dessa vez, em “Destruam Toda a Terra”, para preencher a duração de cerca de uma hora e meia, os realizadores optaram por inserir várias cenas de cansativas lutas entre Gamera e monstros rivais, retiradas de outros filmes. E não faltam mais outras novas sequências toscas também como uma em especial mostrando Gamera literalmente surfando sobre um monstro inimigo, formado pela união de vários alienígenas com tentáculos, que se juntaram numa única criatura enorme para combater a tartaruga voadora. De uma forma geral, o filme é até divertido com tanta cena bagaceira para todos os lados, mas dependendo da situação, também cansa bastante e torna-se um convite ao sono.
(Juvenatrix - 12/11/09)

terça-feira, 24 de março de 2015

Anjo de Dor, Roberto de Sousa Causo

Anjo de Dor, Roberto de Sousa Causo. 207 páginas. Capa de Vagner Vargas. Introdução de Rubens Teixeira Scavone e texto da orelha de Braulio Tavares. São Paulo: Devir Livraria, 2009.

O romance Anjo de dor é, provavelmente, o trabalho mais elaborado, persistente e estimado da carreira de Roberto de Sousa Causo. Como ele afirma nos agradecimentos começou a escrevê-lo em 1990 e só dezenove anos depois foi finalmente publicado. É certo que em quase duas décadas muito da concepção da história foi modificada, mas acredito que a demora só a fez melhorar, tornando-se mais aperfeiçoada e madura, tanto do ponto de vista literário, como do desenvolvimento do enredo e caracterização dos personagens.
Não me recordo em que momento desta longa trajetória eu tive contato com a obra, mas lembro-me de ler uma de suas várias versões e ter feito uma ou outra observação. Mesmo depois de anos do primeiro contato, porém, a leitura do formato final mais me recordou alguns aspectos gerais da trama, do que me surpreendeu com algum desdobramento novo. E isso só reforça, do meu ponto de vista, o quanto Anjo de dor deixou marcas na primeira vez que o li.
É um romance forte, de impacto. Costuma-se dizer, não sem certa razão, que um autor escreve melhor sobre aquilo que conhece. Para um autor de ficção especulativa, esta afirmação soa, aparentemente, como uma crítica mas encaixa-se bem para o tipo de história que Causo criou para o seu romance de suspense e horror.
E a razão é que para quem o conhece e leu boa parte de sua obra, transparece alguns aspectos autobiográficos além de peculiaridades do protagonista que se aproximam do escritor – ex-servidor militar, vegetariano, adepto do espiritismo. Mas longe de sugerir alguma verdade nas entrelinhas, está claro que é uma criação ficcional, baseada, isto sim, em verossimilhança. Assim, não surpreende que o panorama do enredo seja realista e o fantástico se insinue pelas margens até assumir relevância nos momentos decisivos da história. Por sinal, esta característica é das mais recorrentes na ficção do autor, e se por um lado reforça uma identidade temática, de outro soa como um pouco repetitiva a esta altura de sua carreira. Neste particular a demora na publicação de uma obra burilada há tanto tempo talvez tenha diluído a novidade deste tipo de abordagem.
O romance conta a chegada da misteriosa cantora Sheila Fernandes à pequena cidade de Sumaré, interior de São Paulo. Contratada para apresentações numa casa noturna da cidade, ela é recepcionada pelo barman, Ricardo Conte. Apesar da antipatia mútua do contato inicial, parece haver certa atração não apenas sexual entre os dois, além de mais familiaridades do que se supõe.
Sheila foge de um passado perigoso e incriminatório e Ricardo também procura esquecer alguns incidentes de sua passagem pela Força Aérea. Apesar de jovens, ambos estão à procura de um caminho sempre recomeçando, ou em um novo trabalho, ou em um novo lugar. Aos poucos se tornam obcecados um pelo outro, embora seja difícil a ambos admitir e demonstrar isso, com atitudes que procuram mais esconder do que revelar. Tomado por esse impulso, Ricardo volta a pintar e desenha um retrato de Sheila. Não como ela era, mas como ele queria que ela fosse. Insônia e estranhas visões supostamente emanadas pela figura do retrato começam a perturbar a vida de Ricardo. O que seria a manifestação da Sheila do quadro? Pesadelo, alucinação ou um fantasma sobrenatural?
Sheila se torna um sucesso na região, mas quer manter-se avessa a qualquer publicidade. Tem motivos para isso, mas depois que um anúncio é publicado em São Paulo, o algoz do seu passado aparece para acertar as contas. É seu ex-patrão, na verdade um cafetão que quer vingança pelo fato dela tê-lo prejudicado no passado. Junto com alguns capangas o tal Ferreirinha desorganiza a vida da pacata Sumaré e, principalmente, de Sheila, Ricardo e da família do dono da boate.
O romance fica especialmente interessante da segunda parte em diante, com o aumento da tensão e do suspense, além da presença das manifestações sobrenaturais percebidas por Ricardo, decisivas na conclusão da história.
Causo consegue com Anjo de Dor reunir várias qualidades de um bom contador de histórias. Primeiro, equilibra a moldura realista e autobiográfica com os elementos fantásticos, sobrenaturais, tornando-os mais do que meros acessórios: eles são parte da construção e transformação de Ricardo e do próprio entendimento de quem seria Sheila Fernandes. Em segundo lugar, e talvez ainda mais importante, é que a boa caracterização dos personagens se harmoniza com o ritmo crescente dos acontecimentos, tornando a leitura uma experiência estimulante, difícil de ser deixada de lado – e mesmo na ausência da leitura, que os fatos fiquem remoendo na mente do leitor, como se o drama dos personagens tivesse uma dimensão real, palpável.
Embora tenha sido escrito antes, este é o segundo romance publicado de Causo, depois da boa fantasia contemporânea A Corrida do Rinoceronte (2006), mas é o trabalho mais ambicioso do autor, em que se percebe o maior investimento em termos de aprimoração da técnica literária e amadurecimento da trama e dos personagens. Causo afirma que tinha poucas esperanças de um dia publicar Anjo de Dor e talvez esse pessimismo, ou melhor seria dizer, desprendimento, tenha contribuído para tornar melhorar o romance, já que transparece o sentimento, de algo que precisava ser exposto para o mundo exterior, como uma parte dele mesmo.
Anjo de Dor é, bom deixar claro, uma história que incomoda, pois não apresenta soluções fáceis e reconfortantes, ainda mais depois de páginas repletas de suspense e violência. Pois, para uma obra que pretende deixar de ser apenas mais uma entre tantas, é uma aposta bem cumprida por Causo. Especialmente pelo fascínio da dúvida suscitada do anjo de dor de Ricardo Conte também ilustrar o quanto uma obra que é aparentemente entretenimento de qualidade – o que já não seria pouco – pode iluminar (ou tornar ainda mais complexo) aspectos da personalidade humana, para além das interpretações mais superficiais a que o gênero horror está acostumado a ser relacionado. E estes motivos tornam Anjo de Dor uma obra importante, tanto para o autor, como para os caminhos que abrem para uma literatura de gênero de qualidade e, em especial, de horror escrita por brasileiros.

– Marcello Simão Branco
  

segunda-feira, 23 de março de 2015

Kaori e o samurai sem braço, Giulia Moon

Kaori e o samurai sem braço, Giulia Moon. 200 páginas. Ilustrações de Giulia Moon. Capa de Natalli Tami. Giz Editorial, São Paulo, 2012.

Kaori está se tornando rapidamente um ícone no ambiente da dark fantasy brasileira. Isso porque, depois de aparecer com regularidade em antologias e coletâneas, chega em pouco tempo ao seu terceiro romance, com boa aceitação de público e crítica - os dois primeiros são Kaori: Perfume de vampira (2009) e Kaori 2: Coração de vampira (2011), ambos da Giz Editorial. Não é para menos, Giulia Moon é sem dúvida uma das mais gratas revelações recentes da literatura fantástica nacional que, além de um texto enxuto, suave e envolvente, domina muito bem os protocolos do gênero.
Kaori é uma vampira secular, originária do Japão feudal que, por capricho do destino, veio habitar em São Paulo. Ela é linda, sensual, imortal e feroz, e sua presença exala um perfume irresistível tanto aos homens quanto às mulheres. A maior parte de suas histórias se passa nos dias atuais, mas a autora decidiu inovar desta vez.
Kaori e o samurai sem braço é o que muita gente gosta de chamar de "prequela", anglicismo pavoroso que significa uma aventura que, cronologicamente, se passa antes da primeira história de uma série. Contudo, o romance inicia nos dias de hoje, com a sensual vampira fazendo uma visita a Takezo, um velho amigo de "profissão". Conversa vai, conversa vem, Kaori conta ao amigo uma história de sua juventude no Japão, quando ainda era ainda uma kyuketsuki (vampira, em japonês) selvagem e inexperiente. Ela lembra de como foi surpreendida por um terremoto violento e ficou presa sob os escombros de uma residência, e de como foi salva, praticamente destroçada, por um estranho e destemido vagabundo e sua acompanhante. Protegida e alimentada, ela recupera pouco a pouco sua consciência e vigor, para se ver enredada numa situação da qual não tinha como sair. Seu salvador era Kuroshima Kitarô, o lendário samurai maneta caçador de monstros, e sua serviçal mágica Omitsu, uma kistune, um ser da natureza misto de mulher e raposa. Kitarô tinha uma proposta irrecusável: ele quer que ela o ajude, durante um ano, a localizar um monstro muito pior, Shinku, um demônio transmorfo que matou sua família. Em troca, ele não acaba com a existência da vampira. Findo o acordo, Kitarô promete libertar Kaori. E se ela não aceitasse, morreria ali mesmo.
Enfraquecida e sem alternativa, Kaori aceita o acordo, mas o início da relação é tenso. Conforme o trio persegue o rastro de Shinku e enfrenta outros monstros pelo caminho, Kaori recupera suas forças, mas também percebe que Kitarô é honrado e a confiança começa a se estabelecer entre eles. No final, será preciso todo o habilidade, coragem e confiança destes três improváveis aliados para confrontar o poderoso e astuto Shiku.
O romance se desenvolve em forma episódica, com os trio de guerreiros enfrentando diversos demônios e monstros antes do confronto final com Shinku. Essas histórias funcionam como um espaço de desenvolvimento dos personagens e das relações de confiança e amor que vão se formando entre eles, mas nem por isso deixam de ser divertidas e, por muito pouco, não roubam o espetáculo, tal o carinho com que Giulia tratou cada uma delas. O romance, com certeza, não ficaria melhor sem elas.
Outro grande mérito de Kaori e o samurai sem braço é a cuidadosa pesquisa que a autora realizou sobre o ambiente japonês do século 18, seus cenários naturais, arquitetura e costumes, bem como os termos originais, devidamente explicados em notas de pé-de-página, que não deixam nada sem o devido esclarecimento, uma verdadeira viagem de Giulia Moon às suas origens étnica e cultural.
Além disso, o livro é decorado com belíssimas ilustrações realizadas pela própria autora, que é designer profissional e demonstra aqui toda a qualidade de sua arte, valorizada pela elegante produção gráfica do volume.
Posso afirmar que, sem dúvida alguma, ninguém está fazendo mais e melhor que Giulia Moon no que se refere à dark fantasy no Brasil. E, se tivermos sorte, podemos esperar muito mais de Kaori e de Giulia Moon nos próximos anos.
— Cesar Silva

Geração Subzero

Geração Subzero: 20 autores congelados pela crítica mas adorados pelos leitores, Felipe Pena, org. 320 páginas. Capa de Diana Cordeiro. Editora Record, Rio de Janeiro, 2012.

Geração Subzero foi certamente o livro de ficção fantástica brasileira mais comentado em 2012. Desde muito antes de seu lançamento, já era assunto nas redes sociais e, quando do lançamento, rapidamente ganhou resenhas em publicações importantes que a ficção de gênero raramente atinge.
Toda essa atenção foi fruto das inteligentes provocações implícitas em seu título, que faz referência explícita à prestigiosa antologia mainstream Geração Zero Zero: Fricções em rede (2011, Língua Geral), organizada por Nelson de Oliveira, e também porque exagera nas tintas de um suposto confronto entre os autores de gênero e a crítica literária.
O tom provocativo continua forte na longa introdução do volume, assinada pelo organizador, Felipe Pena, que é jornalista, escritor, professor e doutor em Literatura pela PUC, com pós-doutorado pela Universidade de Paris. Um currículo acima de qualquer suspeita, portanto. Essa introdução revela alguns dos objetivos de Pena quanto ao público que ele busca para o livro. O discurso soa como uma pregação, não para os convertidos, mas para o público leigo e, especialmente, para os intelectuais das letras. Isso fica claro porque Pena retoma assuntos superados há anos no fandom, como se os autores de fc&f ainda estivessem preocupados com as antipatias do mainstream tanto quanto já o foram no passado. Até mesmo um manifesto faz parte dessa apresentação, o "Manifesto Silvestre", que propõe elevar o entretenimento à categoria de arte. O conflito entre a literatura de gênero e o mainstream realmente foi pauta entre os autores-fãs há vinte anos, mas a própria evolução do mercado editorial tratou de reduzi-la à devida estatura.
Mas é na leitura dos contos que se percebe a seriedade do trabalho de Pena. A antologia publica vinte contos, cujos critérios de seleção foram bastante científicos, como é de se esperar de um doutor em literatura. Nada do "gostei- não-gostei" e dos bairrismos comuns nesse tipo de dinâmica. Pena não é um iniciado nos corredores do fandom e conseguiu escapar muito bem deles. Seus critérios, que partiram principalmente da presença dos autores nos ambientes frequentados pelos leitores de gênero e a receptividade que cada um dele goza dentro dessas comunidades, conseguiram ser bastante precisos quanto ao instantâneo do estado da arte da ficção de gênero praticada hoje no Brasil. Não é um portfólio para inglês ver, nem uma antologia revolucionária. É um retrato, um recorte como gostam de dizer os acadêmicos, do panorama médio da fc&f nacional neste início de século.
Um antologista geralmente busca a excelência, reunir num único volume os melhores textos de uma escola ou de um gênero. Mas Pena não estava interessado nisso. Então, o livro passeia por vários gêneros, indo do mistério à ficção científica, reunindo autores de vários estilos e competências.
Não vou abordar conto a conto porque isso tornaria a leitura enfadonha, mas alguns deles merecem ser comentados.
A primeira metade da antologia é mediana, mas salta aos olhos o conto "O índio do abismo sou eu", de Luiz Bras, heterônimo do experiente escritor Nelson de Oliveira acima citado que, dessa forma, subscreve a proposta de Pena. Bras tem desenvolvido sua carreira exclusivamente no gênero da ficção científica, abordando temas atuais com um estilo maduro e consistente, qualidades presentes também neste texto que conta a história de uma mulher que sofre de uma doença terminal incurável. Congelada até a cura ser descoberta, quando volta a consciência, muito anos no futuro, ela é sequestrada por um grupo de ativistas políticos que pretende retirar dela todos os órgãos para suprir transplantes em pessoas carentes. A narrativa salta continuamente entre o tempo objetivo natural e um tempo subjetivo virtual, que acontece apenas na mente da protagonista.
A segunda parte da antologia sobe bastante de qualidade, principalmente a partir de "Entrevista com o saci", de Martha Argel, autora da segunda geração da ficção científica brasileira, nos anos 1990, que depois enveredou pela literatura de horror, na qual obteve sucesso e reconhecimento. Martha é cientista, doutora em ornitologia, com muitos trabalhos acadêmicos publicados, além de diversos romances e coletâneas de horror. O conto, cujo título homenageia a escritora americana Anne Rice, fala sobre uma psicóloga de um asilo que conhece um velhinho solitário cheio de histórias revoltantes para contar.
Janda Montenegro é uma jovem autora carioca, formada em Letras pela UFRJ, que também tem alguns livros publicados. Sua contribuição para a antologia foi "Outras onomatopéias", conto absurdista situado nas franjas da ficção fantástica. A história, rápida e pungente, conta o drama improvável que um escriturário medíocre passa ao ser abordado por uma estranha "blitz" nas ruas do Rio de Janeiro. O final esconte uma piadinha, mas ela é tão cruel que evoca tons de humor muito obscuros.
Delfim, que além de escritor é editor e jornalista especializado em quadrinhos, assina "O escritório de design publicitário", um conto na linha absurdista de Murilo Rubião, que fala a respeito de um jovem que vê sua vida irremediavelmente comprometida por causa de seu estranho emprego novo.
"A lua é uma flor sem pétalas", de Cirilo Lemos, autor do romance O alienado, é um conto de ficção científica cyberpunk que, com muita ação e violência, conta uma história de guerra entre gangues de uma superfavela futurista.
Além dos autores já citados, o livro também apresenta textos de André Vianco, Eduardo Sphor, Thalita Rebouças, Carolina Munhóz, Eric Novello, Raphael Draccon, Ana Cristina Rodrigues, Juva Batella, Estevão Ribeiro, Pedro Drummond, Luis Eduardo Matta, Sérgio Pereira Couto, Julio Rocha, Helena Gomes e Vera Carvalho Assumpção, alguns deles verdadeiros pesos pesados da literatura de gênero, que, não raro, figuram nas listas dos mais vendidos. Muitos deles são experientes na literatura de gênero, especialmente no campo infanto-juvenil, aos quais o organizador também gosta de definir com a máxima “Escrever fácil é muito difícil”. Certamente que cada um deles têm, em seus repértórios, contos bem superiores aos vistos nesta antologia, mas como já foi comentado aqui, não era esse o objetivo do organizador. Cabe também lembrar que todos os autores cederam os direitos de seus contos em favor da ONG Ler é Dez, Leia Favela.
Contudo, Geração Subzero ainda esconde uma última pérola. Trata-se do conto "A invenção do cânone", do próprio Felipe Pena, publicado no corpo da apresentação do livro como uma espécie de ilustração. Trata-se de uma ficção absurdista que mostra o diálogo entre um casal de intelectuais numa casa de chás em Paris. Divertidíssimo e repleto de significados.
Geração Subzero poderia ser melhor, é claro. Mas não é esse o mérito do trabalho de Pena. A partir de um olhar suficientemente distanciado e amplo, Pena consegui apresentar um panorama realista das virtudes e pecados da ficção de gênero praticada no Brasil. Para o bem ou para o mal, é o que somos. E contra isso não há como argumentar.
— Cesar Silva

quarta-feira, 18 de março de 2015

Estranhas invenções

Estranhas invenções, Ademir Pascale, org. 120 páginas. Capa de Marcelo Biguetti. Editora Ornitorrinco, Petrópolis, 2012.

Antologias temáticas continuam em alta na ficção fantástica brasileira, e o levantamento realizado pelo Anuário ao longo dos últimos anos prova que elas não perderam o ímpeto editorial em 2012. Apesar dos lançamentos de forma geral terem mostrado uma queda acentuada em relação a 2011, foram publicadas mais antologias e coletâneas em 2012. Isso se explica por conta da crescente demanda por espaço editorial para autores novos e pelo favorável esquema comercial que gerencia esse tipo de publicação. Uma vez que reúne um grupo grande de autores, uma antologia pode contar com muito mais gente no lançamento, e possibilita ações regionais de cada autor, favorecendo uma distribuição mais abrangente. Contudo, percebe-se que há uma certa urgência na montagem e lançamento dos livros, que nem sempre cumprem os objetivos propostos.
Estranhas invenções é um desses casos. A antologia apresenta-se como uma seleção de textos curtos de ficção fantástica – com um pendão óbvio mas não obrigatório para a ficção científica – em homenagem o famoso artista, engenheiro e inventor Leonardo Da Vinci (1452-1519). A produção gráfica, creditada a Marcelo Biguetti, remete a esse objetivo, com ilustrações e citações do sábio florentino espalhadas pelas páginas, criando um clima perfeito para histórias ao estilo steampunk. Mas Da Vinci é sequer citado nos dez textos selecionados; nenhuma das histórias se passa em sua época ou faz referência a qualquer de seus espetaculares inventos, incluindo os textos assinados pelo próprio Biguetti e pelo organizador Ademir Pascale. A homenagem teve aqui um papel apenas decorativo.
"Tempus fugit", de Tibor Moricz, abre a antologia com uma história sobre viagens no tempo, que vem a ser o tema mais recorrente da antologia. Conta os momentos finais de dois cientistas que, depois de aterrorizar a sociedade com seus métodos pouco ortodoxos de pesquisa, têm o laboratório atacado por uma turba furiosa. Para escapar da morte certa, decidem fugir pela própria máquina do tempo que acabaram de inventar mas, na pressa, saltam exatamente para onde nunca deveriam ir.
Em "A ponte para o infinito", Daniel Borba – que também assina o prefácio do livro – conta sobre como um jovem decide realizar o sonho de sua falecida namorada projetando uma máquina de teletransporte para viajar até às estrelas, mas que o arremessa de volta ao passado.
Ana Lucia Merege foi a única autora a situar sua história no passado; não no Renascimento de Da Vinci, mas na época vitoriana. Em "A incrível máquina de Micawber", um grupo de intelectuais do século 19 comparece ao laboratório de um inventor excêntrico para testemunhar os milagres de uma máquina para bisbilhotar os sonhos alheios. O texto tem um caráter levemente cômico e bons diálogos, sendo um dos melhores textos do conjunto.
Só não é melhor que "A temporalamina", de Miguel Carqueija, que retoma o conceito do efeito borboleta à luz do seu habitual estilo farsesco. Um cientista, inspirado pela morte da esposa irascível mas que ele amava, inventa uma beberragem que o permite voltar no tempo para salvá-la. A história é narrada por um amigo do inventor, que o visita esporadicamente e, em cada um dos encontros, se depara com uma realidade mais espantosa que a anterior.
Cesar Alcázar participa com "Na solidão de Phobos", uma história sofisticada em que um homem isolado numa estação espacial vicia-se numa espécie de gravador de sonhos, ao ponto de não saber mais a diferença entre sonhos, gravações e a realidade, uma situação de grande risco para quem está tão longe de casa.
"O terceiro nível", de Maurício Montenegro, também faz uso de um dispositivo similar para contar a história de um cientista que, ao ser entrevistado num programa de tv, sente um mal súbito que o leva a questionar os contornos de sua própria identidade na medida que ela vai sendo sobreposta pela de um criminoso de outra realidade.
Alícia Azevedo, em "Anastasis", inventa uma máquina de ressurreição de animais de estimação, que traz fortuna aos seus criadores, mas imperfeições do processo acabam causando mais dor do que alegria.
"Apenas um botão" é o conto assinado pelo organizador, Ademir Pascale, sobre um garoto problemático, porém genial, que cria um computador com o qual pretende reconfigurar suas próprias memórias, mas os resultados são trágicos.
 O experiente autor de hard fiction Jorge Luiz Calife comparece com "Uma questão de tempo", situado no mesmo universo da trilogia Padrões de contato. Luciana Vilares vai à Austrália entrevistar um cientista que afirma ter inventado uma máquina do tempo. É claro que a intrépida jornalista quer experimentar o aparelho e acaba se envolvendo numa aventura selvagem. A história tem a qualidade habitual do autor, mas por conta de alguns detalhes de seu desfecho, soa equivocada dentro do universo da Tríade.
Fechando a antologia, "A fuga", de Marcello Biguetti, conta em tom debochado os passos de um homem infantilizado rumo a uma improvável e certamente imerecida divindade.
Como se percebe, montar uma antologia temática é uma missão complicada quando se depende unicamente de textos inéditos. Mesmo neste caso, em que temos a participação de autores experientes, ninguém arriscou ir além do óbvio e os textos acabaram falando das mesmas coisas, sendo que alguns chegam a ser incomodamente similares entre si. Talvez o prazo estabelecido para a seleção dos contos tenha sido demasiadamente estreito, ou o conceito da obra não foi compreendido plenamente pelos autores. De qualquer forma, o avaliação geral de Estranhas invenções é que, além de ter perdido a grande oportunidade de falar de Da Vinci, a antologia também não satisfaz as expectativas de um leitor que busca pelo estranhamento prometido no título.
— Cesar Silva

Contos do Sul, Simone Saueressig

Contos do Sul, Simone Saueressig. 96 páginas. Capa de Marciano Schmitz. Edição da autoraNovo Hamburgo, 2012.

A escritora gaúcha Simone Saueressig é um nome significativo no fandom brasileiro de ficção fantástica. Autora premiada e experiente, Simone surgiu por volta de 1983 nas páginas do boletim do já extinto Clube de Ficção Científica Antares, de Porto Alegre. Logo profissionalizou-se como autora de livros de fantasia infanto-juvenis, tais como os romances O palácio de Ifê (1989) e A máquina fantabulástica (1997), publicados pelas prestigiosas editoras L&PM e Scipione, respectivamente.
Simone viveu na Espanha durante cinco anos e voltou ao Brasil em 1999, quando retomou suas carreiras de professora de dança flamenca e escritora. Logo nos primeiros tempos de sua volta, a dificuldade em restabelecer o contato com as antigas editoras levou a publicar ela mesma o livro Um vulto nas trevas (2004). Embora tenha depois reconquistado seu espaço no meio editorial, gostou da experiência de autopublicação e passou a se utilizar mais vezes desse expediente.
Contos do Sul é uma dessas iniciativas, coletânea com cinco contos de horror que usam como tema as lendas e mitologias gauchescas. O título do volume faz referência ao importante livro de Simões Lopes Neto, Lendas do Sul, publicado pela primeira vez em 1912. A própria Simone comenta a obra, neste trecho transcrito da apresentação do volume:
"Contos do Sul aborda quatro criaturas folclóricas: a Iara em sua forma original de ypupiara, o lobisomem, a mula-sem-cabeça e o Saci. A exceção é o Diabo, que não pode ser considerado folclore brasileiro, já que é universal na área de abrangência da cultura cristã, e não é tema da Lendas do Sul."
O primeiro texto é o excelente "A cisterna", uma história vigorosa e assustadora, que está entre as melhores peças do gênero já escritas por um autor brasileiro. Conta a aventura de um grupo de crianças por uma mata próxima de suas casas. Em algum lugar ali existe uma espécie de piscina artificial, larga e funda, onde alguma coisa estranha vive. Curiosas, as crianças sobem numa árvore para olhar o ser que se move sob as águas escuras, logo abaixo dos galhos. O pouco que se pode observar revela voluptuosos contornos femininos que fascinam os garotos. Mas tudo se complica de verdade quando a coisa começa a falar.
Em "O cemitérios dos cães", investigadores da polícia escavam um terreno próximo a um canil, e encontram pistas que comprometem seriamente a versão do proprietário para o desaparecimento de seu filho. Apesar de ser uma narrativa curta em que as cenas de horror são rápidas e imprecisas, trata-se de um conto de forte expressão emocional.
"O galpão" é a história com o diabo, citada por Simone na apresentação. O vínculo com a cultura sulista vem na forma de uma pequena cidade interiorana, tão pequena que nem cemitério tem. De vez em quanto, passa por ali um trem, conduzindo passageiros e, principalmente, levando os caixões com os mortos do lugar, para serem enterrados em uma outra cidade. O que é uma mão na roda para Klaus, que aproveita o fato de ser o encarregado de despachar os cadáveres para antes dilapidá-los de seus pertences sem que ninguém desconfie. Para passar o tempo, Klaus atrai crianças e vagabundos para o galpão onde são armazenados os cadáveres até a passagem do trem, e ali os assassina por pura diversão. Depois, desfaz-se dos corpo de suas vítimas nas fossas de um curtume desativado. Quando um desconhecido chega a cidade, Klaus logo sente o sangue ferver pela expectativa de mais uma noite de diversão macabra. E, para melhorar, o homem traz uma brilhante corrente de ouro no pescoço, o que vai unir o útil ao agradável.
É o texto mais moralista da coletânea, mas tem personagens muito bem delineados e uma ótima ambientação. Simone chegou a me mandar a foto de um desses tenebrosos buracos de curtume, coisa comum na região.
"O farol" vai para a beira do mar, onde o solitário faroleiro recebe a visita do chefe, que veio entregar suprimentos. Quando desaba um grande temporal, ambos têm que se abrigar no interior do farol. No meio da chuvarada, uma mulher bate à porta e o faroleiro a despacha bruscamente, o que intriga o seu superior. O faroleiro explica que ela é uma mulher meio doida quee pediu para se abrigar da chuva no galpão e ele deixou, mas o homem se indignou: devia ter deixado a infeliz entrar no farol  com eles, que é mais protegido. Quando começa a soar uma zoada estranha do lado de fora, o homem não atende aos pedidos do faroleiro e abre a porta do farol para ver o que é, e o fim do mundo espalha-se sala adentro, escoiceando e queimando tudo. O que aconteceu, só saberemos dias depois, no hospital. Apesar de ser uma história de pouca tensão, os parágrafos que descrevem as cenas de  confusão dentro da sala do farol são vívidas e impressionantes, e fazem valer a história.
O último conto da antologia é "O saci", conto "Destaque" do 3º Prêmio Habitasul Revelação Literária na Feira, de 2003, e publicado então no livro do evento. É o conto mais longo da coletânea, mas isso não significa muito porque os textos são todos mais ou menos do mesmo tamanho. Lembra as histórias de Ray Bradbury, com circos assombrados em que acontecem coisas estranhas, mas a poesia de Simone não é igual à do escritor norteamericano, além do que a ambientação bem desenvolvida, assim como a cultura gaudéria que encharca o texto, não permitem que se realize maiores comparações.
A história conta sobre um jovem, pré-adolescente que, ao visitar a feira de esquisitices de um circo itinerante, vê a oportunidade de ter sua iniciação sexual com a dançarina da trupe. Mas, para isso, ela exige que o menino traga o saci que, inadivertidamente, ele revelou que seu avô guarda aprisionado numa garrafa. Mesmo temendo a maior bronca de sua vida, o menino rouba a garrafa onde a coisa presa demonstra toda a sua fúria, e a leva para a garota, ávida por uma atração realmente incomparável para o circo. Nada mais direi, exceto que este saci tem muito pouco a ver com aquele que Monteiro Lobato tornou popular.
Contos do Sul tem formato de bolso e apenas 96 páginas, sendo um livro que se pode ler de um só fôlego. Mas as histórias são tão intensas e surpreendentes que acabamos lendo cada uma delas mais de uma vez, só pelo prazer reviver as histórias. Especialmente "A cisterna" e "O saci", que são peças de qualidade inegável, representantes de uma dark fantasy brasileira autêntica, que não abre mão de personagens bem estruturados e situações realmente assustadoras, e que não se deixa cair na caricatura e no estereótipo.
Simone sabe, como poucos, manipular as emoções do leitor e conduzir a tensão das histórias em direção ao melhor resultado dramático possível. É uma autora de posse de toda a sua competência técnica, que se movimenta com desenvoltura num gênero que lhe parece tão familiar quanto a própria cultura que herdou de seus antepassados. Simone faz parecer de tal forma natural que nos perguntamos: por quê há tão pouco disso na literatura nacional?
— Cesar Silva

A Batalha dos Monstros (Attack of the Monsters, Japão, 1969)


Direção de Noriaki Yuasa. Duas crianças, o japonês Akio (Nobuhiro Kajima) e o americano Tom (Christopher Murphy), avistam num telescópio caseiro um disco voador que aterrissou perto da casa do primeiro, ao mesmo tempo em que um cientista, Dr. Shiga (Eiji Funakoshi), está estudando a origem de misteriosos sinais vindos do espaço, sendo interrogado pela imprensa. As crianças vão ao encontro da nave e ao entrarem no interior, são transportados por controle remoto ao planeta de origem, chamado Tera, que é similar ao nosso planeta, com mesma atmosfera, e situado no outro lado do Sol (ideia reciclada e já utilizada em “O Alerta do Espaço”, 1956). Esse planeta é habitado por duas mulheres, Barbella e Flobella, as únicas sobreviventes de uma civilização avançada tecnologicamente, mas que permitiu que um computador rebelde criasse monstros gigantes que dominam o lugar. As alienígenas conseguiram aprisionar e manter sob controle como um cão de guarda um desses monstros, Guiron, que é uma espécie de rinoceronte com uma lâmina de aço na cabeça. Elas então sequestram as crianças para devorar seus cérebros e adquirir seus conhecimentos, obtendo informações sobre a Terra. Mas o monstro voador Gamera está atento e parte para o planeta para defender os pirralhos e travar uma batalha contra Guiron.
Distribuído no Brasil em DVD junto com “Destruam Toda a Terra” (1968), “A Batalha dos Monstros” tem fotografia em cores e dublagem em inglês, sendo mais um episódio dentro do universo ficcional da tartaruga gigante Gamera, que depois de ser apresentada no filme de origem “Gammera – O Monstro Invencível” (1966), agora é uma criatura “amiga das crianças” e “defensora da humanidade”. O roteiro é completamente ridículo, cheio de diálogos banais, personagens insignificantes e carregado de situações bagaceiras ao extremo. Todas as cenas com Gamera são toscas e hilárias de tão mal feitas, com direito até a uma performance do monstro numa espécie de barra acrobática parecendo um ginasta olímpico. Além de outra cena memorável de tão ruim onde a tartaruga imensa, que a propósito, voa pelo espaço com jatos propulsores, conserta uma nave cortada ao meio juntando os pedaços e soprando como se fosse uma vela de aniversário. Tanto Gamera como Guiron são interpretados por atores vestidos em trajes de borracha e com olhos de peixe morto, e as cenas de batalhas entre ambos são memoráveis de tão ruins. As instalações da base alienígena no planeta Tera possuem todos aqueles elementos clichês dos filmes “B” antigos de FC, com cenários coloridos e repletos de aparelhos eletrônicos futuristas.
(Juvenatrix - 12/11/09)

terça-feira, 17 de março de 2015

O Mundo Além da Imaginação de Rod Serling

Marcello Simão Branco

Se os anos 1960 foram os mais radicais e contestadores do século XX, até na mais conservadora das mídias seus ecos foram sentidos. A partir de 1959 estreava na TV americana uma série que modificaria para sempre seus padrões de qualidade, filmagem e criatividade. Uma série que mostrava a que viera até no nome: ‘além da imaginação’ àquilo já visto e imaginado na TV.
O responsável por essa virada foi um sujeito que lia as revistas ‘pulp magazines’ (compradas em bancas de jornais por menos de um dólar) desde criança. Rod Serling  foi além da ‘zona do crepúsculo’ em revistas como Weird Tales, Amazing Stories e Astounding Science Fiction. Chegou até escrever alguns contos para elas, mas suas idéias e criações ganharam espaço mesmo em um novo meio de comunicação e entretenimento que mudou o padrão de comportamento da América nos anos de 1950. Sim, ela, a televisão.
Sem elenco fixo, com cada episódio tendo uma história própria sem ligação alguma com as demais, apenas com a narração clássica de Serling abrindo cada epísódio, Além da Imaginação (Twilight Zone) explorou à exaustão o fantástico na TV.  Foram 156 episódios (138 com 25 minutos de duração e 18 com 50 minutos), Destes apenas 70 foram exibidos entre nós, numa clássica fotografia em preto e branco, angulações ousadas, recursos de metalinguagem e metáforas jamais pensadas que muito ajudaram a mudar o panorama artístico e temático da época.
Isto por si só já seria de interesse em meio à mediocridade reinante, mas o que realmente cativou o público transformando a série num fenômeno popular, foi a solidez, o conhecimento do fantástico que Serling e seus brilhantes roteiristas, entre eles os escritores Richard Matheson e Charles Beaumont, demonstraram em histórias insólitas, absurdas, oníricas, assustadoras, mas sempre com um pé na realidade. Só a primeira pisada do pé direito, é claro. Pois com o esquerdo, Serling & Cia. nos levava a tempos, lugares, acontecimentos ‘além da imaginação’.
Um dos segredos da empatia das histórias era a sua premissa: em situações banais do dia-a-dia os personagens se deparam com fatos, situações, lembranças, imagens, ou até aparições que subvertem o cotidiano onde estão mergulhados. E aí de pouco adianta tentar voltar à realidade. Acompanhamos fascinados, surpresos, apavorados e com pena, as peripécias e o destino dos pobres coitados que entraram numa região onde nossas leis e senso comum não existem. Vale apenas a imaginação além da zona do crepúsculo.
Serling brincou com o público de uma maneira nova: fora dos westerns e comédias de costumes tão características da TV americana da época. Colocou o estranhamento, o sobrenatural, a fantasia na casa dos conservadores familiares da classe média. E eles adoraram!  Além da Imaginação foi além do mero escapismo em suas histórias de viagens no tempo, colonização espacial, pacto com o demônio, invasão extraterrestre, universos paralelos,  discutindo dentro do ‘além’, desde questões importantes e delicadas da condição humana — como morte, pecado, vaidade, egoísmo , até questões da vida social e histórica: ecologia, guerra nuclear, ética científica e tantos outros mais.
E a estrutura e os recursos técnicos de que dispunha só ressaltam a criatividade e qualidade dos episódios. Os filmes eram produzidos ainda em 16 mm, num ritmo alucinante de dois episódios por semana. Trocando em miúdos, apenas um ou dois dias de filmagem para cada episódio, pois após as filmagens vêm as etapas de finalização, como montagem, efeitos especiais, sonorização e copiagem.
Outra curiosidade era quanto ao elenco de atores que Rod Serling dispunha: na grande maioria jovens, sem muita experiência, cobrando um cachê baratinho, precisando de trabalho para alçar sonhos mais altos em Hollywood. E destes vários realmente trilharam uma carreira brilhante, como Lee Marvin, William Shatner, Bill Mumy, Anne Francis, Donald Pleseance, Warren Stevens, Rod Taylor, Dean Stockwell, Leonard Nimoy, Elisabeth Montgomery, Charles Bronson, Jonathan Harris, Buster Keaton, Lee van Cleef, Jeff Morrow, Burgess Meredith, Martin Landau, James Franciscus e... ufa! Muitos outros.
Pergunte aos fãs de horror e ficção científica entre os 40 e 50 anos (talvez seu pai ou sua mãe), qual foi o programa de TV que os fez definitivamente amar histórias de monstros e viagens espaciais. E sem precisar ficar escondido se sentindo um sujeito bizarro e desajustado. Pois a série era elegante e criativa o suficiente para ser assistida por toda a família.
A maioria dos episódios são de ótima qualidade, mas os três primeiros anos foram os mais criativos, quando as histórias eram contadas em apenas 25 minutos e os roteiros eram mais enxutos e as situações mais decisivas e arrebatadoras. Histórias que me vem à mente sem muito esforço, como “Onde Estão Todos”? (“Where is Everybody?), o primeiro da série, onde um homem descobre que está sozinho em uma pequena cidade. Até aí é estranho, mas o que me arrepia até hoje é o final quando ele descobre que fazia parte de uma experiência para analisar as reações humanas na solidão do espaço.
Também muito lembrado é “Tempo Suficiente” (“Time Enough at Last”). Único sobrevivente de uma guerra nuclear, um homem pode se dedicar ao seu passatempo predileto: ler. Depois de selecionar milhares de livros, ele deixa cair seus óculos no chão e...!
Só pra deixar vocês com inveja vou citar mais dois (só mais dois eu prometo!). Em “A Elegia” (“Elegy”), astronautas pousam em um planeta onde seus habitantes parecem estar sempre em transe. Parecem, pois o que lhes espera não os deixarão muito diferentes dos nativos. Já “Céu Aberto” ("And When the Sky is Opened”), mostra três pilotos que depois de voltarem do primeiro vôo espacial tripulado começam a desaparecer, um a um, sem deixar rastros nem lembranças de sequer terem existido. Deu pra sentir o que é estar em contato com “uma dimensão tão vasta quanto o espaço e tão desprovida de tempo quanto o infinito”?
The Twilight Zone é a mais criativa e original série de ficção científica, horror e fantasia já exibida e depois de seu encerramento em 1964 restou a Serling negociar os direitos de reprise em pequenas estações de TV pelo interior dos Estados Unidos. Não demorou muito para aparecem imitações. A primeira delas foi Quinta Dimensão (The Outer Limits) já no ano de 1963. Produzida pela ABC enfocou mais a ficção científica. Durou duas temporadas, 50 episódios e poucos momentos de brilhantismo.
Em 1969 os fãs estavam saudosos e Rod Serling iniciou um novo projeto Rod Serling’s Night Gallery (A Galeria do Terror). Um novo seriado com 50 episódios independentes levados ao ar entre os anos de 1970 e 1972. Desta vez o enfoque foi mais explícito no horror, com adaptações de contos de H.P. Lovecraft, Arthur Machen, Robert Bloch entre outros mestres do pavor. Mas não tinha o mesmo espírito inovador e ousado de sua criação original, pois ele não tinha a mesma independência sobre a produção da série. Serling faleceu em 1975, com apenas 50 anos deixando sua marca como um dos mais brilhantes homens a manipular a imaginação muito além dos nossos sentidos e dimensões.
Todo um culto a Rod Serling apareceu depois de sua morte. Uma revista de cinema e literatura a Twilight Zone Magazine foi publicada de 1981 a 1989 ao mesmo tempo que a CBS produzia entre 1985 e 1987 o remake do clássico com o mesmo nome de Twilight Zone. Nesta, os recursos foram generosos, o que faltou foi qualidade na direção, interpretação e principalmente o nível dos episódios (apesar de ter  boas adaptações de contos de Ray Bradbury, Arthur C. Clarke e Harlan Ellison), que ficava em sua maioria aquém do único que nos levou realmente ‘além da imaginação’. Mais recentemente foi produzido um segundo remake, também com uma produção melhor do que a qualidade média dos episódios, embora seja interessante e louvável que este estilo de seriado, ou seja, pequenos contos independentes sobre o fantástico e o sobrenatural, ainda sobreviva na competitiva e imediatista TV americana.
Mas o charme e, por que não?, o saudosismo da série clássica em preto e branco ainda é insuperável, a começar por sua inesquecível na abertura: “Há uma quinta dimensão além daquelas conhecidas pelo homem. É uma dimensão tão vasta quanto o espaço e tão desprovida de tempo quanto o infinito. É o espaço intermediário entre a luz e a sombra, entre a ciência e a superstição; e se encontra entre o abismo dos temores do homem e o cume dos seus conhecimentos. É a dimensão da fantasia. Uma região Além da Imaginação”.

O Alerta do Espaço (Warning From Space, Japão, 1956)


Direção de Koji Shima. Misteriosos corpos luminosos surgem nos céus da capital do Japão, Tóquio, sendo avistados e estudados por cientistas. São alienígenas do planeta Pairan com uma tecnologia superior que querem alertar a humanidade sobre os perigos fatais de um planeta desgovernado de outra galáxia que está em rota de colisão com a Terra. Com dificuldade de comunicação, eles decidem assumir a forma humana, através de uma sósia de uma cantora e dançarina famosa, Hikari Aozora (Toyomi Karita), entrando em contato com um grupo de cientistas formado pelo Dr. Kamura (Bontaro Miake), o físico Dr. Matsuda (Isao Yamagata) e o Dr. Toto Isobe (Shozo Nanbu). A intenção dos extraterrestres é ajudar sugerindo um ataque com armas nucleares no planeta para tentar destruí-lo ou desviar sua rota, mas o plano falha restando uma última tentativa através de um potente explosivo cuja fórmula foi criada pelo Dr. Matsuda e produzida com o auxílio dos seres do espaço.
Primeiro filme japonês de Ficção Científica com fotografia em cores, “O Alerta do Espaço” tem como maior destaque a presença dos alienígenas, mesmo que poucas vezes, num excercício de bizarrice impagável, com atores fantasiados num traje amarelo em forma de estrela e com um único olho imenso no centro, na altura da barriga. Provavelmente, as criaturas do planeta Pairan estão entre as mais ridículas em aparência da história do cinema bagaceiro de Horror e FC, e por isso mesmo garantem uma diversão memorável. De resto, o roteiro esbarra em clichês o tempo todo, com cientistas tentando encontrar um meio de salvar o mundo do choque com outro planeta, além da presença de elementos de conspiração através de uma organização secreta querendo se apossar da descoberta do explosivo. O desfecho óbvio e previsível se resume com a interferência dos alienígenas na solução do problema, cujas consequências também os afetariam, pois seu planeta possui órbita similar ao da Terra, porém no outro lado do Sol.
Vale destacar também que esse é um dos poucos filmes que procuraram retratar alienígenas com intenções pacíficas ao invés de propósitos tiranos de invasão e conquista, como a maioria esmagadora dos filmes do gênero. A cena de transformação de um alienígena para a forma humana, através de uma máquina, é uma referência direta ao filme alemão “Metrópolis” (1927), numa sequência similar entre um robô mecânico e a personagem Maria. Foi lançado em DVD no Brasil junto com “Gammera – O Monstro Invencível” (1965), numa versão dublada em inglês e legendas em português.
 (Juvenatrix - 12/11/09)

domingo, 15 de março de 2015

La Momia Azteca Contra el Robot Humano (México, 1958)


Também conhecido pelo título alternativo inglês “The Robot vs. The Aztec Mummy”, essa produção mexicana em preto e branco de 1958 e dirigida por Rafael Portillo, tem um nome sonoro que já sinaliza para sua história bizarra de crossover entre uma múmia assassina possuidora de força descomunal, e um robô criado a partir de partes de um cadáver humano, que nos remete ao universo ficcional de “Frankenstein”. Tosco ao extremo, desde a produção ao roteiro, passando pelo elenco com interpretações que vão do exagero (caso do “cientista louco”) ao marasmo (demais personagens), o filme diverte os apreciadores do cinema fantástico bagaceiro justamente por sua ruindade involuntária, apesar da tentativa de ser sério ao contar uma história absurda, repleta de clichês e situações distantes de qualquer lógica.
Um tesouro da antiga civilização Azteca está escondido e protegido por uma múmia que no passado foi o guerreiro Popoca (difícil não rir desse nome, na interpretação de Angelo De Steffani, atuando sob forte maquiagem tosca). A múmia carrega em si um bracelete e uma couraça peitoral que trazem gravações em hieróglifos que revelam a localização secreta do tesouro. De olho em suas riquezas, para financiar seus projetos científicos mirabolantes, temos um “cientista louco”, o Dr. Krupp (Luis Aceves Castañeda), também conhecido como o bandido “Morcego”, sempre acompanhado de seu capanga Tierno (Arturo Martínez), que tem o rosto deformado num acidente com ácido provocado numa luta com a múmia. Ele criou um robô humano unindo a cabeça de um homem com o corpo mecânico de uma máquina radioativa movimentada por controle remoto, para ajudá-lo no combate contra a múmia e se apossar do tesouro. Para tentar impedí-los, temos o cientista Dr. Eduardo Almada (Ramón Gay) e seu fiel assistente Pinacate (Crox Alvarado), que utilizam as importantes informações da bela Flor (Rosa Arenas), jovem esposa do cientista, através de sessões de hipnose que revelam sua relação com a vida passada da princesa azteca Xochitl.     
Curiosamente, o filme faz parte de uma série de três, todos com a mesma direção de Rafael Portillo, roteiro de Guillermo Calderón e Alfredo Salazar e elenco principal, sendo precedido por “A Múmia Azteca” (La Momia Azteca,) e “A Maldição da Múmia Azteca” (La Maldición de la Momia Azteca), ambos de 1957, e os quais tiveram várias cenas reaproveitadas na edição final do crossover, para explicar acontecimentos do passado da história, facilitando muito o trabalho dos produtores na redução do orçamento. 
La Momia Azteca Contra el Robot Humano” é bem curto, com apenas 65 minutos, e como na maioria dos filmes bagaceiros de múmias, aqui também não encontramos nenhuma preocupação dos roteiristas com situações inverossímeis e absurdas como o fato da múmia se deslocar livremente sem nunca ser notada, ou como consegue se manter escondida em segredo num mausoléu no interior de um cemitério, ou ainda a reduzida e incompetente ação policial. E também temos obviamente alguns daqueles tradicionais elementos do cinema fantástico tranqueira, como o laboratório do cientista louco, repleto de equipamentos bizarros, a atmosfera sombria de um cemitério sinistro e o interior claustrofóbico cheio de ambientes interligados de uma pirâmide abandonada.
O destaque dessa tranqueira inacreditável vai justamente para aquilo que dá nome ao filme, no conjunto formado pela múmia e sua maquiagem risível e pelo robô extremamente hilário de tão tosco, culminando com o confronto entre eles no desfecho, uma breve sequência dígna de constar na memória por muito tempo pelo elevado grau de bizarrice. Indicado apenas para os apreciadores de bagaceiras antigas.
(Juvenatrix - 15/03/15)

sábado, 14 de março de 2015

Sombras de Reis Barbudos, José J. Veiga

Sombras de Reis Barbudos, José J. Veiga. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 136 páginas. Texto da orelha de Mário da Silva Brito. Lançado originalmente em 1972.

Numa pequena cidade do interior do Brasil, como milhares delas, aliás, as pessoas vivem suas vidas dentro de uma estável e confortadora rotina. Até que o parente de uma das famílias chega com pompa e cerimônia com suas belas roupas e um carrão anunciando as modernidades da cidade grande. Cercado de mimos e interesses traz a novidade: a chegada da Companhia. Mas o que é a Companhia?
     Está montado o cenário deste romance perturbador que à maneira peculiar do autor, através do talento recorrente pela fluência narrativa e à sensível construção de tipos humanos, nos insere no terror da opressão e do incompreensível.
     Sim, Sombra de Reis Barbudos foi escrito no auge da ditadura militar brasileira e não é possível que nos furtemos a interpretá-lo como uma extrapolação crítica deste período histórico sombrio. Assim como em outras de suas obras, mais notavelmente em A Hora dos Ruminantes (1966), o realismo extremo da opressão política-econômica escapa, por assim dizer, para o terreno do bizarro e do absurdo.
     A Companhia muda de forma radical a vida das pessoas da cidadezinha. Quase todos trabalham para ela, direta ou indiretamente. Elas têm de seguir suas regras e regulamentos que, pela presença onipresente de fiscais, passa a ter força de lei. Começam as proibições pelo consumo, depois pelas opiniões, e por fim nos costumes e no comportamento individual. Ou seja: estabelece-se um contexto de controle quase absoluto na vida de cada pessoa.
     Para dificultar a comunicação e a mobilidade, a Companhia cerca as ruas e casas de muros, para tempos depois cercar toda a cidade. A cada construção opressiva há uma insólita “resposta” dos céus. Aos muros surgem urubus aos milhares; às cercas surgem pessoas voando. Em princípio sem saber de onde, e depois com gente da própria cidade ganhando os céus. Sem dúvida temos no primeiro caso, uma anunciação de tempos tenebrosos, e no segundo caso um desejo desesperado por liberdade.
     A narrativa se concentra na família de tio Baltazar, o figurão que anuncia a chegada da Companhia. Seu Horário, cunhado do recém-chegado adere à Companhia, lá prospera, mas depois se demite e é “sumido” em desgraça. Mesmo Baltazar depois de ser um dos líderes da Companhia, é levado embora da cidade e adoece gravemente. Ao que parece o cerco à família de Lucas, o menino que conta a história, é um micro-cosmo do que acontece com a cidade inteira sob o julgo das regras e normas da Companhia.
     Numa tentativa de respondermos o que é esta instituição que controla de forma opressiva a vida das pessoas podemos nos indagar: onde está o Estado nesta cidade que permite que uma empresa (ou melhor, uma organização), assuma o controle de tudo, até de funções públicas? Neste caso como ficariam as leis e as ligações externas da cidade com o restante do país? Embora possa parecer algo incoerente, até mesmo neste plano é possível compreendermos a Companhia como uma destas mega-empresas que assumem as atividades econômicas de tal forma que toda a sociedade gira em torno dela, capturando, inclusive, o poder público. Historicamente existiram muitos destes enclaves estrangeiros no Brasil e, principalmente, na América Latina.
     Por outro lado é possível também uma leitura mais política, do ponto de vista metafórico: a Companhia nada mais é que a instauração de uma nova ordem: a ditadura, seja ela militar ou civil. Neste plano a crítica de Veiga seria ao regime autoritário, então em vigência no Brasil.
     Com sua habitual sensibilidade Veiga trabalha a opressão nos pequenos espaços, nas individualidades e não no plano macro. Por isso a interpretação das causas e efeitos da nova ordem é esmiuçada no interior da família de Lucas. Para criticar uma nova ordem sócio-política de caráter autocrático, Veiga mostra o terror causado no plano individual e subjetivo básico das pessoas: a incompreensão, o medo, a desconfiança e a solidão. Por outro lado resvala ao fantástico ao mostrar que o terror do realismo e do controle extremo meio que vaza para o terreno do inexplicável. Talvez porque uma situação de opressão total seja em si mesma uma aberração difícil de suportar.
     Seriam os tais reis barbudos vislumbrados durante e no fim do livro os donos da Companhia? Nada se explica porque não há explicações possíveis quando as pessoas são arbitrariamente oprimidas e caladas. Como afirma o cientista político Guillermo O´Donnell, ao comentar sobre o clima de terror que viveu durante a ditadura militar argentina nos anos 1970, talvez tão apavorante quanto a violência física é a capacidade das ditaduras de estabelecer o medo absoluto que nos leva ao silêncio. De boca fechada correríamos menos riscos, pois não exteriorizaríamos verbalmente às pessoas ou ao mundo o que pensamos. Mas de outra parte esta interiorização forçada de sentimentos nos humilharia porque não expressaríamos muito do que nos torna humanos. Esta dimensão está presente em Sombra de Reis Barbudos, embora a válvula de escape, se assim posso colocar, se insere na dimensão do fantástico: dos urubus, da chuva incessante, do mágico que todos viram mas ninguém lembra e, acima de tudo, pelas pessoas que voam. Uma eloquente imagem do desejo visceral de liberdade.
     Este romance dialoga e critica os tempos sinistros que vigoraram na história brasileira, mas não está datado porque se presta a múltiplas leituras interpretativas. Na mais óbvia para nos alertar sobre os horrores sempre possíveis da volta de uma opressão política; em outra, digamos mais contemporânea, sobre as eventuais armadilhas de uma sociedade que, embora pluralmente aberta, está excessivamente voltada a uma esfera individual de interesses  podendo, com isso, gerar posturas intolerantes e desejos de ordem, voltando-se contra ela mesma. Por tudo isso, além do encanto inegável de sua prosa e suas imagens surpreendentes, é que Veiga, o grande fantasista brasileiro, possui um alcance universal.
Marcello Simão Branco

quinta-feira, 12 de março de 2015

Além do deserto, Érica Bombardi

Além do deserto, Érica Bombardi. 272 páginas. Capa de Vitor Gorino. Edição da autora, Campinas, 2012.

Em junho de 2009, recebi de Érica Bombardi, que então era apenas uma colega de uma lista de discussão literária, um pedido incomum: se eu poderia ler o romance de fantasia que ela havia escrito e fazer observações a respeito para que ela o aperfeiçoasse. Como já havia feito isso para outros autores amigos, aceitei. Logo recebi pelo correio um calhamaço com o manuscrito de um romance chamado Fatum, título que eu confesso não ter gostado muito – e o disse logo para a autora. Tomei o original e, com um lápis à mão, fui lendo, assinalando e escrevendo meus comentários nas laterais das páginas e em emails que trocávamos periodicamente. Algumas semanas depois, devolvi o manuscrito a autora com um longo comentário final. Na época, Érica trabalhava numa editora e eu imaginei que o livro dela seria publicado pela mesma, por isso foi uma surpresa quando vi o nome dela na relação dos selecionado pelo Programa de Ação Cultural do Estado de São Paulo – Proac 2011, com um texto que tinha justamente o nome do primeiro capítulo de Fatum. "Deve ser o próprio", pensei. E era mesmo. Foi uma sensação agradável ver um texto que eu criticara recebendo o financiamento de um concorrido programa cultural. Mais uma vez, pensei comigo mesmo: "agora ela vai achar fácil uma boa editora para publicar o livro". Mas Érica tinha outros planos.
Além do Deserto foi publicado pela própria autora, que fundou uma empresa especialmente para fazê-lo. Com a experiência que havia adquirido em anos de trabalho na editora, Érica queria colocar em prática sua própria política editorial. Em poucos meses, o volume estava pronto, sendo que foi o primeiro livro de 2012 que me chegou às mãos.
Além do Deserto é o início de Fatum, série de alta fantasia sobre um mundo compartilhado por homens e seres mágicos. Neste primeiro romance, o mundo de Fatum está agonizante, arrazado pela guerra entre os homens e as fadas. Tornado num extenso deserto, os sobreviventes desse mundo outrora belo e vigoroso agora habitam os últimos oásis, em torno dos quais ergueram pequenas cidades muradas que também estão em um lento processo de esgotamento. A guerra acabou, mas o sangue dos mortos ainda recobre vastas regiões e demônios poderosos empreendem ataques às cidades, causando muitas baixas.
Mas algo não parece certo nessa tragédia planetária. A guerra foi brutal e efetiva demais. As Sombras, um grande mal desconhecido, é o verdadeiro responsável por toda a destruição e ainda se esconde, a espera do momento certo para o golpe final. Contra ele, só uma pessoa pode ter chance, Thera, uma jovem revoltada que não se interessa pelo destino de Fatum e só se pensa em achar o irmãozinho perdido. Mas ela será levada a agir por um  improvável grupo de humanos e fadas, que acreditam ser ainda possível salvar o seu mundo. Na busca por revelação e esperança, eles são peões nos jogo do maléfico inimigo oculto, que vai manipular os heróis para garantir sua vitória final, que a cada momento parece mais e mais inevitável.
A guerra entre homens e seres mágicos é recorrente nos textos de autores-fãs que, cegos pelo brilho de suas obras de culto, não se abrem para melhores possibilidades criativas. Mas o tema já rendeu histórias surpreendentes nas mãos de profissionais como Bruce Sterling, Glen Cook e João Manuel Barreiros. Érica também encontrou aqui um viés diferenciado e conseguiu construir uma narrativa inusitada que, na maior parte do tempo, escapa das convenções do gênero, embora eventualmente deslise para o usual, o que é natural num trabalho de estreia. Mas o romance revela uma rica palheta de ideias interessantes a serem exploradas, uma fauna variada de animais exóticos e entidades mágicas, uma história milenar a ser resgatada, além de vilões deliciosamente detestáveis, como devem ser em toda boa história de fadas.
O financiamento do Proac não veio por acidente, foi mérito da autora e depõe ao seu favor. A seriedade e o carinho com que Érica tratou a criação e publicação do livro, impresso em papel reciclado e uma linda ilustração nas capas internas, também merece o respeito dos leitores, que podem esperar por mais nos futuros trabalhos da autora, que certamente virão.
— Cesar Silva

A Companhia Negra, Glen Cook

A Companhia Negra (The Black Company), Glen Cook. 308 páginas. Tradução de Edmo Suassuna. Editora Record, Rio de Janeiro, 2012.

Quem viveu os primeiros anos do segundo fandom brasileiro de ficção fantástica, entre nos anos 1980 e 1990, sabe que, naqueles tempos, o que mais havia para ler era ficção científica. O acesso ao gênero era garantido por diversas coleções de grandes editoras, como a José Olimpio, Nova Fronteira, Brasiliense, Hemus e Record, sem falar naquelas que vinham importadas de Portugal, com a nata da Golden Age e da New Wave estrangeiras.
A efervescente atividade dos fanzines e a chegada da edição brasileira do periódico Isaac Asimov Magazine, em 1990, parecia acenar com o estabelecimento definitivo do gênero. Nessa época, os leitores tiveram acesso ao que de melhor se fazia no Brasil e no mundo em matéria de fc. Também havia uma boa e constante oferta de horror, principalmente dos medalhões do gênero, mas a fantasia... ah, a fantasia. A não ser pelos clássicos e uma poucas edições de Marion Zimmer Bradley – bestseller à época –, nada mais havia para ler. Tolkien conhecia apenas uma edição mal distribuída de O senhor dos anéis – pirata, dizem as más línguas. O próprio C. S. Lewis, autor de referência na alta fantasia, era mais conhecido dos leitores brasileiros por seus romances de ficção científica, gênero que também caracterizava o único livro que o escritor americano Glen Cook tinha publicado por aqui: Os herdeiros da Babilônia (The heirs of Babylon, Global), uma surpreendente história de guerra naval pós-holocausto, com o realismo cruel de quem tem experiência no serviço militar – Cook serviu a Marinha.
A Companhia Negra, de longe seu trabalho mais importante, foi originalmente publicado nos EUA em 1984 mas, por ser fantasia, foi preciso que os editores brasileiros esgotassem todas as demais possibilidades para alguém arriscar dar uma chance a esse grande contador de histórias praticamente desconhecido no Brasil. É o primeiro romance de uma série que já conta com pelo menos dez volumes publicados. Trata-se de um relato, em forma de crônicas, escrito por Chagas, codinome do médico da Companhia Negra, um tradicional e respeitado grupo de mercenários que aluga seus serviços especializados a governos de um mundo tão fantástico quanto violento, continuamente mergulhado em guerras entre seus governantes que, geralmente, são muito mais do que homens.
Uma das coisas que mais impressiona ao se iniciar a leitura de A Companha Negra é que a história não tem um início tradicional. Nada de gnomos risonhos a tomar chá enquanto explicam como seu mundo funciona. Por exemplo, veja a seguir os primeiros parágrafos do volume:

"Houve prodígios e maravilhas suficientes, é o que o Caolho diz. Temos de culpar a nós mesmos por interpretá-los mal. A definição do Caolho não prejudica nem um pouco sua admirável capacidade de olhar para trás. 
Relâmpagos num céu limpo atingiram a Colina Necropolitana. Um dos raios acertou a placa de bronze que selava a tumba dos forvalakas, obliterando metade do feitiço de confinamento. Choveu pedras. Estátuas sangraram. Sacerdotes de vários templos relataram vítimas de sacrifício sem corações ou fígados. Uma dessas vítimas escapou depois de ter as tripas abertas, e não foi recapturada. Na Caserna da Forquilha, onde as Coortes Urbanas estavam aquarteladas, a imagem de Teux se virou completamente para trás. Por nove noites seguidas, dez abutres negros circularam o Bastião. Então um deles expulsou a águia que vivia no topo da Torre de Papel."

A narrativa segue nesse mesmo tom, contando uma batalha feroz na qual a Companhia Negra tenta defender, sem muito sucesso, os muros do castelo de seu atual contratante do ataque de uma fera monstruosa, sendo que boa parte da Companhia não sobrevive ao primeiro capítulo.
Entre o sangue e a morte que cercam o cronista, ficamos sabendo que seu mundo está passando por um tipo de revolução, um levante popular conhecido como Rosa Branca, que luta contra o domínio da Dama, soberana que está muito interessada em contratar os serviços da Companhia e, para isso, move seus peões num jogo quase sempre desonroso.
A Dama é uma bruxa com milhares de anos de idade, que tem aos seu serviço um grupo de generais lendários conhecidos como Tomados, magos impiedosos, cada um deles mestre em algum tipo de incomum habilidade sobrenatural. Não que a magia seja exclusiva desses monstros, longe disso. Ela está enraizada nas relações cotidianas desse mundo. Todo o exército que se preze mantém diversos bruxos em suas fileiras, e a Companhia Negra não é diferente. Boa parte das batalhas são travadas – e decididas – pelas força das artes arcanas. Mas um bruxo também pode ser morto, daí o uso ainda bastante útil dos guerreiros e suas espadas. Além das batalhas, o mundo da Companhia Negra está coalhado de monstros poderosos e assustadores, que matam e devoram. Ninguém é completamente confiável e até os protagonistas são arrogantes e traiçoeiros.
De tudo isso, só vamos ter uma noção mais ou menos clara para além de dois terços do romance, porque nada é explicado previamente. O leitor, da mesma forma que o narrador e seus companheiros de armas, na maior parte do tempo não fazem a menor ideia do que está acontecendo e só tentam manter-se vivos e de pé. O cronista não pode contar nada além do que aquilo que vê, o que deixa o leitor perdido no meio de intrigas incompreensíveis e batalhas que não parecem fazer nenhum sentido.
A narrativa é ágil e feroz, montada a partir de episódios frouxamente amarrados entre si. O texto é ríspido, sincopado e desconfortável, o que contribui para uma intensa sensação desamparo, sem espaço para a poesia que geralmente predomina o gênero.
Contrariando os protocolos, Cook lança mão de um grande contingente de personagens populares, gente comum que se vê envolvida pela violência e tem que dar um jeito de sobreviver. Os problemas dos reis, rainhas, príncipes e princesas não são o foco da atenção do autor, que os deixa de lado, recolhidos atrás das paredes de pedra de suas torres.
Como já foi dito, a série conta com nove sequências, sendo que as duas primeiras já foram traduzidas pela Record em 2013 e 2014, respectivamente: Sombras eternas (Shadows linger, 1984), A Rosa Branca (The White Rose, 1985), The silver spike (1989), Shadow games (1989), Dreams of steel (1990), Bleak seasons (1996), She is the darkness (1997), Water sleeps (1999) e Soldiers live (2000), sendo que já foram anunciadas mais duas: A pitiless rain e Port of shadows.
Além de A Companhia Negra, Glen Cook escreveu muitos outros livros igualmente inéditos no Brasil, como os das séries Garrett p.i., Dread Empire, Instrumentalities of the night, Starfishers e Darkwar, além de diversos romances independentes, dos quais conhecemos apenas o já citado Os herdeiros da Babilônia que, de qualquer forma, merece republicação.
Glen Cook é um grande escritor e merece mais atenção tanto dos editores quanto dos leitores. E sendo A Companhia Negra seu livro mais significativo, é obrigatório para todos aqueles que querem conhecer, como diz o personagem de Laurence Fishburne em Matrix, "até onde vai a toca do coelho".
— Cesar Silva