sexta-feira, 3 de abril de 2015

Almanaque Jornada nas Estrelas

Almanaque Jornada nas Estrelas, Salvador Nogueira e Susana Alexandria. 272 páginas. Capa de Delfin. São Paulo: Editora Aleph, 2009.

A série de TV Jornada nas Estrelas (Star Trek) é um dos símbolos da cultura popular da segunda metade do século 20 e, nesse sentido, parte formadora de boa parte dos fãs que se tornaram leitores de ficção científica no Brasil, a partir do início dos anos 1980.
Este livro é o primeiro escrito e publicado no Brasil sobre o mais popular e influente seriado de TV de ficção científica[1] e, de quebra, de grande sucesso no país, em virtude de sua exibição quase contínua entre o fim dos anos 1960 ao início dos 1990, para ficarmos só na chamada TV aberta.
Os autores são conhecidos fãs da série e bastante ativos. Salvador Nogueira, um jornalista de divulgação científica, criou o bom site Trek Brasilis, uma das principais referências para a informação sobre a série no Brasil. Já Susana Alexandria é uma tradutora de recente destaque ao verter para o português clássicos como, por exemplo, Fim da eternidade, de Isaac Asimov, e tem atuado junto à Jornada através de seu interessante trabalho de pesquisa sobre as fontes literárias, principalmente de William Shakespeare, presentes nos episódios da série clássica. Inclusive, a presença de um capítulo no livro sobre isto é um dos pontos altos a ser ressaltado.
O livro é muito bonito e agradável, fartamente ilustrado – ainda que sem cores internas –, diagramado com desenvoltura e leveza. Além dos textos principais, há várias informações complementares e curiosidades em textos curtos, envoltos em balões e quadros, talvez para agilizar uma consulta rápida, como requer um livro identificado como um “almanaque”. E talvez por se aferrarem demais a este método, o livro acaba revelando suas fraquezas em termos de conteúdo e de prioridades.
Primeiro, o livro é claramente enfocado na série clássica. O início da série é recontado com um nível de detalhe muito bom e inclui também um guia de episódios das três temporadas – bem feito, mas que nada acrescenta aos vários à disposição do trekker brasileiro, inclusive em português.[2] Daí em diante, as demais séries são comentadas de forma resumida, ressaltando-se apenas os seus aspectos principais e algumas informações de bastidores. Mas onde está ao menos a lista dos episódios de cada série? Com relação aos filmes para o cinema, a ênfase se repete, pois comenta até o sétimo filme – onde termina a participação dos personagens da série clássica –, e os demais são apenas citados nominalmente. O mesmo procedimento acontece quando escrevem sobre histórias em quadrinhos e os livros publicados no Brasil. Um diferencial relevante seria publicação de uma listagem dos títulos lançados no país. Uma chance perdida. E mais estranho ainda é que nem os 23 livros da própria Aleph sobre a série são listados, mas sim os de outras editoras! Tomaria tantas páginas assim a publicação dos títulos? É o tipo de informação que deixaria o livro útil para o fã e colecionador.[3]
Mas a pior falha do almanaque é sua abordagem distorcida do fenômeno Star Trek no Brasil. Para começar, poderiam abordar a repercussão da série no país, estabelecendo um instigante paralelo com a da terra natal do seriado e com isso fugir do tradicional de contar como foi nos Estados Unidos. Eu mesmo tenho o recorte da revista Intervalo, de São Paulo, anunciando a estréia no país da série, pela TV Excelsior, em 1968.[4] O incêndio que acabou com esta emissora teve repercussão sobre a exibição da série no país, já que alguns rolos de episódios foram perdidos. Um tópico sobre os dubladores poderia ter sido abordado, falando das versões da AIC e depois da VTI. Isso está disponível na internet.[5]
O mais polêmico, porém, ficou reservado para o capítulo nove, “Trekkers!”, ao comentarem sobre a comunidade de fãs no Brasil. Eles escreveram na página 239:

“Foi durante as reprises das séries coloridas no Brasil, no início dos anos 1980, que toda uma geração de novos fãs veio juntar-se aos antigos. Mas, naqueles tempos pré-internet, pré-celular e pré-teve a cabo, a comunicação entre os fãs era muito precária – para não dizer inexistente. É muito comum ouvir histórias de trekkers que se achavam os únicos fãs brasileiros da série. Isso mudou quando surgiram os primeiros fã-clubes de Jornada nas Estrelas no Brasil, particularmente dois deles, que se tornaram conhecidos nacionalmente: o Jetcom, do Rio de Janeiro, e a Frota Estelar, de São Paulo. Ambos surgiram no mesmo ano em 1989.”

Este trecho não condiz com a verdade. O primeiro fã-clube organizado sobre a série é a Sociedade Astronômica Star Trek (SAST), criada em São Paulo, em 1982. O clube tinha reuniões semanais e publicava o fanzine Star News, que durou onze anos, em 48 edições. A SAST tinha sócios por todo o Brasil e contatos com grupos de fãs semelhantes no Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e interior de São Paulo. Além de contatos no exterior, como nos Estados Unidos e em Portugal. Se Nogueira e Alexandria afirmam que havia fãs que se achavam os únicos, bem se vê que não era o pessoal da SAST.
A SAST foi retratada em mais de uma oportunidade por jornais, revistas e programas de TV da época.[6] Dizer que a comunicação era precária ou inexistente é um equívoco de julgamento risível e preconceituoso, como se o mundo sem as tecnologias de hoje praticamente não fosse viável. Além disso, Susana Alexandria manteve contato com a SAST durante um breve período.
Para os autores, ao que parece, a história organizada dos trekkers no Brasil começou com os clubes com os quais eles tiveram mais contatos e participação. Mas por que desconsideraram de maneira tão contundente os fãs dos anos 1980? E nem é possível dizer que não tinham como ter acesso a eles, porque alguns se integraram com destaque aos clubes que vieram depois e existe alguma literatura histórica já escrita sobre o assunto.[7]
É fato que com a Frota Estelar nos anos 1990 houve mais organização, visibilidade e repercussão, principalmente por conta das chamadas “convenções estelares” e do feito significativo de trazer três atores do elenco principal da série clássica para o país: Walter Koenig (Checov), George Takey (Sulu) e Leonard Nimoy (Spock). Mas é prematuro desconsiderar o movimento de fãs dos anos 1980, já que manteve o interesse sobre o seriado, com fãs articulados e ativos. E nunca é demais lembrar que a SAST é considerada uma das primeiras associações de fãs que assinalam o ressurgimento da própria ficção científica brasileira, a chamada Segunda Onda, ao lado do Clube de Ficção Científica Antares, de Porto Alegre, e do fanzine Hiperespaço, ambos de 1983. O que preocupa é que por este ser o primeiro livro sobre a série escrita no Brasil, a defesa da posição dos autores sirva como a versão oficial sobre o assunto.
Quando soube deste livro pensei no que ele poderia trazer de diferente para o trekker brasileiro, já que existem vários livros excelentes sobre a série publicados nos Estados Unidos, e mesmo no Brasil, se pensarmos em Jornada nas Estrelas Compendium, de Allan Asherman e as biografias de William Shatner e Leonard Nimoy. Ou seja, o Almanaque só seria útil como fonte de consulta se tivesse informações básicas completas, como listas de obras e episódios das séries e trouxesse algo brasileiro sobre o assunto. Talvez a obra não tenha sido concebida para o trekker, mas sim para o público em geral. Afinal, a Aleph tem adotado este princípio para os seus livros de ficção científica. Isso explicaria este almanaque light, ao invés de um com mais ênfase em informações de pesquisa. Se assim for, o interesse para o trekker é reduzido. Por tudo isso, embora o livro seja bem produzido, ainda se espera outro sobre a série que traga informações bibliográficas e de pesquisa e, principalmente, mais voltadas à rica – e ainda mal contada – história do movimento trekker no Brasil.
– Marcello Simão Branco



[1] Mas não é o primeiro abordando a série. Em 1993, Ana Creusa Zacharias escreveu uma novelização chamada A abadia, em edição independente.
[2] O mais completo, claro, é Jornada nas Estrelas Compendium, de Allan Asherman, publicado pela Sci-Fi Books, em 1999. Já em termos de guia produzido por brasileiros, o melhor é TV Séries – Jornada nas Estrelas: Guia de Episódios, edição especial da revista em seu ano II, número 16, outubro de 1998, num ótimo trabalho de Fernanda Furquim e Marta Machado.
[3] Talvez por desconhecimento, os autores deixaram de comentar sobre um álbum com 240 figurinhas colantes sobre Jornada nas Estrelas: A Nova Geração, publicado pela editora Abril Panini S/A, em 1991.
[4] O título da reportagem é “Lá em cima onde mora a aventura: Emoção e garotas bonitas, é o que promete ‘Jornada nas Estrelas’. Fotos dos episódios “Deste lado do paraíso” e “Miri” ilustram o texto.
[5] Veja o artigo “Jornada nas Estrelas (Star Trek): Uma dublagem através do tempo”, de Thiago Siqueira, publicado em http://universofantastico.wordpress.com/2009/04/11/jornada-nas-estrelas-uma-dublagem-atraves-do-tempo.
[6] Veja os títulos de algumas reportagens sobre os fãs dos anos 1980: “Um jeito trek de ser”, no Jornal do Campus da USP, n. 67, 1º de junho de 1988; “A guerra dos trekies brasileiros”, no Jornal da Tarde, de São Paulo, em 27 de maio de 1989. As duas com fotos de fãs. E também na revista Video Business, em 1988, com “Fãs além da imaginação”. Participaram também num programa sobre vídeo e cinema na Rede Bandeirantes, em São Paulo, em 1988, apresentado por Serginho Café. Exemplos que atestam que existia uma intensa atividade de fãs, ao contrário do que defende os autores do Almanaque.
[7] Escrevi uma história dos fãs da série no Brasil, de 1982 a 2006, “Os fãs de Jornada nas Estrelas no Brasil”, em http://www.scarium.com.br/artigos/simao02.htm.

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