domingo, 8 de março de 2015

O livro do cemitério, Neil Gaiman

O livro do cemitério (The graveyard book), Neil Gaiman. 336 páginas. Ilustrações de Dave McKean. Tradução de Ryta Vinagre. Coleção Jovens Leitores, Editora Rocco,  Rio de Janeiro, 2010.

O autor britânico Neil Gaiman, desde que voltou sua carreira prioritariamente para a literatura – antes ele se dedicava mais aos quadrinhos – vem arrebatando os mais cobiçados prêmios da FC&F internacional, como os Hugo, Nebula e Locus, às vezes com contos, outras com novelas e romances. Por conta disso, Gaiman apareceu no Anuário 2008 com a antologia Coisas frágeis, e no Anuário 2006 com o romance Os filhos de Anansi, ambos publicados no Brasil pela Editora Conrad. Em 2010, a editora Rocco publicou, em sua coleção Jovens Leitores, O livro do cemitério que, em 2009, recebeu o prêmio Hugo de Melhor Romance. A história apareceu primeiro como um conto na antologia M is for magic (2008) e recebeu o prêmio Locus de melhor noveleta.
O livro conta a delicada história de Ninguém Owens, um bebê que, numa noite trágica, escapa de seu berço e gatinha pela rua até ter a atenção atraída por um cemitério antigo. Enquanto o bebê faz sua viagem de exploração, Jack, um assassino implacável e perfeccionista a serviço de uma organização muito misteriosa, chacina seus pais e irmãos. Quando chega ao berço para completar o serviço, o encontra vazio. Furioso, parte para a rua na intenção completar a tarefa.
O espírito recém desencarnado da mãe assassinada, nos poucos momentos de que dispõe, implora aos fantasmas do cemitério que protejam o seu bebê. Ele é escondido e o assassino vai embora frustrado, mas resoluto em terminar o trabalho no futuro.
O pequeno é adotado pelo falecido casal Owen que, como não sabe seu nome, o chama de Ninguém. Silas, um estranho morador da capela do cemitério, que não é fantasma mas também não está exatamente vivo, aceita proteger o menino e é ele quem proporciona, a partir de então, alimento, roupas e outras necessidades básicas da criança. Sua educação, contudo, fica ao cargo da população desencarnada que ali habita, gente de diversas épocas, algumas mortas há centenas de anos. Nin, como é carinhosamente chamado,  vive escondido no cemitério, sem contato com os vivos, pois os fantasmas temem que, caso ele saia, seja atacado pelo assassino. Contra todos os prognósticos, Nin cresce e se desenvolve nas artes fantasmagóricas, adquirindo poderes que geralmente só os fantasmas têm.
Muitos outros personagens intrigantes aparecem na história, entre eles a Sra. Lupescu, membro dos Sabujos de Deus, por quem a princípio Nin não nutre muita simpatia, mas que se revela sua mais dedicada protetora.
As aventuras de Nin dentro do cemitério têm um aspecto épico grandioso. É um mundo à parte, com regras especiais e uma beleza que só mesmo um fantasma pode apreciar. Uma das tumbas, por exemplo, guarda a entrada do mundo dos ghouls, os devoradores de cadáveres, assim como uma estranha e assustadora cripta encravada nas profundezas do cemitério, onde habita uma entidade tão antiga quanto poderosa.
Certo dia, Nin conhece Scalett, uma menina viva que vai brincar no cemitério. Ela não fica por muito tempo, mas Nin desenvolve por ela uma afeição especial e acaba iniciando-a nos mistérios de sua estranha vida. Nem ele, nem ela e nem mesmo os leitores podem imaginar a importância que a garota terá no desfecho desta história.
Os fantasmas tentam, mas não conseguem refrear a curiosidade e a iniciativa do menino quando ele começa a explorar o exterior do cemitério. Sua aparência desgrenhada e roupas estranhas chamam a atenção e logo Jack está de volta para concluir o serviço inacabado.
O Livro do Cemitério tem muitos atributos para agradar o leitor, além da riqueza de seus personagens, todos memoráveis – incluindo Jack – e do enredo movimentado e surpreendente. O maravilhamento emana mais intensamente das coisas que não chegam a ser mostradas e explicadas, como a imensa cidade fortificada dos ghouls, as motivações da estranha corporação que quer Nin morto, a natureza incógnita dos protetores de Nin, além das histórias fascinantes de cada um dos fantasmas daquele cemitério.
Gaiman constrói um ambiente britânico de intenso clima gótico e, espertamente, adota o mesmo artifício que Stephen King e Peter Straub usaram em O talismã, encerrando a história quando o menino atinge a idade em que não será mais um menino, deixando ao leitor a perspectiva de imaginar como seria uma possível sequência. Não sei se Gaiman resistirá em contá-la ele mesmo; King e Straub não conseguiram evitá-lo.
As ilustrações são uma atração à parte. Dave McKean é parceiro histórico de Gaiman desde seu primeiro trabalho americano, a minissérie em quadrinhos Orquídea Negra, depois como capista de todas as edições de Sandman. Seu estilo está intimamente identificado com a arte de Gaiman, de forma que não poderia ter sido uma escolha melhor. McKean trabalhou aqui apenas com nanquim negro, num desenho repleto de contrastes dramáticos que lembram o cinema expressionista alemão.  A presença das ilustrações reforça o objetivo juvenil da edição, porém a história de infância de Nin Owen no cemitério guarda segredos suficientes para causar interesse nos adultos também. E o estilo arrojado de McKean contribui para dar-lhe os contornos visuais adequados.
 Gaiman tem tantas qualidades como contador de histórias que não é de estranhar, portanto, que o livro tenha sido premiado com o Hugo, numa votação popular de fãs de ficção científica. Além do Hugo, O livro do cemitério recebeu a Newbery Medal, a Carnegie Medal e foi indicado ao prêmio Locus de Melhor Novela Juvenil, sendo assim um dos mais premiados trabalhos recentes da fc&f.
Cesar Silva

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