quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Paraíso Líquido, Luiz Bras

Paraíso líquido, Luiz Bras. 303 páginas. Texto da orelha de Rebecca O´Brien. Terracota Editora, 2010.

Uma das grandes novidades da ficção científica brasileira dos últimos anos foi a aproximação do renomado escritor Nelson de Oliveira. Primeiro com artigos provocadores e em seguida com a organização do projeto Portal, com seis antologias, e o livro Futuro presente (2009), que reuniu alguns dos mais expressivos nomes da fc e do mainstream brasileiro. Se tantas atividades já seriam suficiente para lhe colocar numa posição de destaque, neste ano de 2010, ele publicou nada menos do que três livros! Tudo isso o colocou na condição de “Personalidade do Ano de 2010”, merecendo uma longa entrevista nesta edição.
Talvez para se desvencilhar de sua persona no mainstream, Oliveira assumiu o pseudônimo de Luiz Bras para se exercitar na seara da fc. Mesmo assim, dos três livros publicados, um deles ainda conserva o seu nome de batismo. É Poeira, demônios e maldições, um romance de fantástico literário levemente inspirado em Borges, que também está resenhado nesta edição.
Luiz Bras escreveu uma novela infanto-juvenil de fc Babel Hotel, que explora a ideia de repetição e prisão dentro de um mesmo dia, numa sequência aparentemente inexplicável e impossível de fugir. Um texto que foi finalista do Prêmio Jabuti 2010.
Finalmente, o terceiro livro é este Paraíso líquido. Publicado com o apoio do governo do Estado de São Paulo, dentro do Programa de Ação Cultural (proac), traz uma reunião de sua produção curta recente que o aproximou do campo da fc de meados de 2007 para cá. Em termos de proposta temática e interesse intelectual é, possivelmente, o livro mais importante. A maioria das histórias foi publicada antes nas antologias de sua própria iniciativa ou em outras que ele também colaborou, como Contos imediatos (2009) ou Cartas do fim do mundo (2009).
Todos os textos são reconhecidamente de ficção científica. Mas engana-se quem supõe que esta aproximação seja tranquila ou realizada nos termos tradicionais dos escritos e temas do gênero. As treze histórias do livro primam pelo desconcerto e por certo desconforto, não necessariamente desagradável, mas instigante. Assim como nas antologias por ele organizadas, a intenção é sacudir os lugares-comuns e suas zonas de conforto medíocres, seja dos autores mainstream – principalmente, desconfio –, seja dos de fc. Nesse sentido, Paraíso líquido é a voz mais elaborada e profunda do autor, sinalizando novas possibilidades, principalmente de estilo e linguagem, mas também de temas na maneira como podem ser trabalhados. Ainda que, por vezes, falte mais intimidade com os temas do gênero.
Como aponta a autora da orelha Rebecca O´Brien, há uma linha narrativa e temática identificável na sequência das histórias, embora elas sejam muito específicas e voltadas a si mesmas, numa leitura independente. O fio que tece a linha temática de Bras situa-se na incerteza e na dúvida, no estranhamento e mal estar dos personagens com situações em que eles, gradativa ou abruptamente, perdem todo o seu controle racional e emocional. E parte significativa advém do que poderíamos chamar de uma desconstrução da realidade. Mas não em termos filosóficos, mas literários.
Os resultados nem sempre são bem sucedidos, mas vale a tentativa e percebe-se que quando isso ocorre nenhuma das histórias está deslocada de um projeto que se fortalece em conjunto. Isso porque os textos estão elaborados numa estrutura narrativa e estilística que aprofunda a sensação de estranhamento e que se acentua de história para história. E não só para o leitor, mas também aos personagens, como que presos numa teia enrredada pela imaginação experimental do autor.
Como em toda coletânea, alguns textos são mais felizes do que outros. Dentro de uma perspectiva que leve em conta o prazer da leitura e o impacto dramático, as histórias mais bem realizadas são “Primeiro Contato”, “Daimons”, “Dèjá-vu”, “Cruzada” e “Singularidade nua”. Em “Daimons”, por exemplo, crianças são manipuladas por brinquedos para que envenenem seus pais. Com um ritmo quebradiço, e súbitas mudanças que desconcertam o leitor e os personagens, é dos textos mais pungentes sobre o universo infantil – nem tão infantil assim. A melhor história do livro talvez seja aquela que mais próxima esteja da fc em stritu sensu: “Déjá-vu”, pois é uma narrativa sobre uma máquina do tempo. Mas o que a torna tão inusitada e interessante é que o tema está retratado a partir da estrutura narrativa, pois lido do começo ao fim vai ao passado e do fim para o começo avança para o futuro. Brilhante.
Há textos mais complexos e de leitura algo dificil, como a novela delirante e perturbadora “Paraíso líquido”, o agudo exercício de especulação político-existencial de “Futuro presente” ou histórias que exploram com coragem temas como os da paranoia e esquizofrenia em chave de fc, como “”Nuvens de cães-cavalos”, “Memórias” e “Aço contra osso”.
Percebe-se que a perspectiva de Bras vai na linha da exploração das incertezas, ou melhor, dos limites do que entedemos por realidade, a partir das insuficiências e contradições do ser humano, aproximando-se aqui de um Philip K. Dick, mesmo que de forma aparentemente não intencional. Contudo, o melhor ainda oferecido por Bras é o seu texto literário. O refinamento de sua linguagem, rara na fc brasileira em particular. Como ilustrado acima em “Dejà-vú”, estamos diante de um autor talentoso e com pleno domínio da técnica literária, a ponto de explorá-la sem medo e com desenvoltura. Por esse aspecto, Bras se coloca como uma voz literária no campo da fc brasileira, ocupando um espaço que em algum momento Ivan Carlos Regina e Braulio Tavares preencheram durante os anos 80 e 90 do século passado, embora estes com mais intimidade com o gênero em si. Nesse sentido, a bem-vinda chegada de Luiz Bras à fc brasileira traz um salto de qualidade de estilo e que, espero, possa influenciar positivamente para que textos com mais elaboração e estilos mais arrojados melhorem a qualidade média da fc escrita no país, em boa parte com uma qualidade temática interessante e promissora, mas que, em geral, ainda deixa a desejar em termos formais.
Marcello Simão Branco

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