segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

O que vale é ser feliz?

Os Vendedores de Felicidade (The Joy Makers), de James Gunn. Francisco Alves Editora – Coleção Mundos da Ficção Científica, 1984. Tradução de Reynaldo Guarany, texto das orelhas de Fausto Cunha e ilustração de capa de Antonio Jeremias. 243 páginas.

Sabe quando você pega um livro meio que por acaso na estante? Percebe que está lá há anos, tem um título interessante, uma capa bonita e é de um autor que, embora não tenha lido, sabe que é respeitado? Pois bem, tudo isso aconteceu comigo e me motivou a lê-lo no caso de Os Vendedores de Felicidade (The Joy Makers), do norte-americano James Gunn, publicado originalmente em 1961.
Este livro se insere na tradição das anti-utopias de sociedades construídas para serem perfeitas, de tal maneira que todos os problemas do homem seriam resolvidos. Mas não são. Nesse sentido, dialoga especialmente com Admirável Mundo Novo (1932), de Aldous Huxley. Acredito que também é possível estabelecer conexões próximas com alguns contos e os dois romances de André Carneiro – Piscina Livre (1980) e Amorquia (1991) – com suas sociedades voltadas à imposição do prazer e do sexo.
James Gunn foi nomeado como Grande Mestre Nebula em 2006, o reconhecimento de  uma carreira de reputação sólida como crítico e acadêmico, tanto que venceu o Hugo com um celebrado estudo sobre um dos principais autores do gênero, Isaac Asimov: The Foundations of Science Fiction (1982), mas mostra-se também um autor talentoso e sensível nas três novelas que formam este romance fix-up.
Ainda era corrente nos anos 60 o expediente de juntar histórias antes publicadas de maneira independente em revistas do gênero na forma de livro. Por isso percebe-se uma certa desigualdade de estrutura como um todo, mas nada que comprometa, pois todas estão inseridas dentro de um mesmo universo ficcional conscientemente criado pelo autor.
A grande questão de Os Vendedores de Felicidade é a felicidade. Por que ela é tão importante? Por que temos tantas dificuldades em sermos felizes? E o que fazer para mantê-la quando a alcançamos?
Na primeira parte do livro, originalmente publicada como “The Unhappy Man”, um magnata egoísta é confrontado com o surgimento de uma organização que promete trazer a felicidade para as pessoas. Incomodado com o que acredita ser charlatanismo ele se submete a alguns dos testes, mas não se convence, embora tenha suas dores no corpo curadas por uma incrível cadeira com poderes medicinais. O que mais o desagrada é que a organização solicita que as pessoas que queiram adentrá-la têm de pagar uma quantia proporcional às suas posses e abandonar seu meio de vida, deixando tudo a cargo da Hedonics Inc. Ela cuida de tudo, de tal maneira que a pessoa não mais precisa ter preocupações materiais e pode viver, em tese, apenas para a busca do prazer e da alegria. Aos poucos toda a população é seduzida pela idéia do hedonismo, tanto que em 2003 é lançada a Declaração do Hedonismo, uma espécie de Declaração Universal dos Direitos do Homem. Com isso, ser infeliz se torna uma violação do sagrado direito – melhor dizendo, dever – de ser feliz. Depois de perder sua esposa e parte de sua indústria para a organização o magnata se vê em minoria, pede para voltar mas é rejeitado.
A segunda parte nos leva para um futuro mais distante. Em “The Naked Sun”, o mundo está completamente dominado pela doutrina hedonista, tratada de uma forma científica. A sociedade inteira responde ao chamado Conselho, que governa tudo e designa instrutores para cada bairro das cidades para que cuidem das eventuais infelicidades das pessoas. Isso porque nem todos estão preparados ou se adaptam a esta felicidade, pois ela se torna um fardo, ao destruir a criatividade e a motivação das pessoas. A história segue do ponto de vista de um destes instrutores, um sujeito que procura seguir os tais preceitos hedonistas à risca com seus pacientes. E isso o torna um problema para o Conselho, pois neste momento os sonhos e fantasias ministrados às pessoas passam pelo comércio de drogas e uma mecanização cada vez maior das atividades. Perseguido para ser lobotizado e trazido novamente à “felicidade”, ele não tem alternativa senão fugir para um dos planetas colonizados, para onde iam os rebeldes.
Na terceira história, “Name Your Pleasure”, estamos em Vênus. Duzentos anos depois da chegada dos colonos eles estão começando a ter os primeiros êxitos em seu processo de terraformização do planeta. É quando surgem seres em duplicata dos habitantes, ameaçando a harmoniosa convivência social baseada em princípios do hedonismo. Afora Vênus, também há colônias estabelecidas em Marte, Ganimedes e Calisto. Mas como a Terra está mais próxima, é enviado um emissário para procurar respostas e pedir ajuda ao que acreditam ser uma invasão extraterrestre. Ao chegar à Terra, ele a encontra vazia, com todas as construções em pé, tudo funcionando perfeitamente, mas sem as pessoas. Todos os seres que a habitam são robôs que desempenham as mais diferentes funções. É avistado por um ser de aparência humana, mas para descobrir que é um duplo – um androide – igual aos que há em seu planeta natal. Com isso percebe que a invasão vinha da própria Terra, pois já que as pessoas sucumbiram por “excesso de felicidade”, a organização impessoal e mecanizada que controla a Terra quer levar esta mesma felicidade para as outras colônias, já que foi programada para trazer a máxima satisfação a todos os seres humanos. Ele encontra uma mulher e com ela luta para impedir os planos. Chega a encontrar várias pessoas mantidas inconscientes flutuando dentro de uma câmara semelhante a um útero, como que em preparo para renascer em um momento adequado. As pessoas foram conduzidas por meio de ilusões sofisticadas a este estado original de satisfação de todo ser humano, a proteção do ventre materno. Sem saberem se, afinal, eles mesmos não estariam vivendo uma ilusão e na verdade imersos na mesma câmara uterina, abandonam o planeta, voltando para Vênus.
Como disse antes, falta certa harmonia de enredo entre as histórias, natural já que não é um romance no formato tradicional. Nesse sentido, está ausente também explicações mais completas e genéricas de como funcionaria a sociedade, embora elas sejam esboçadas implicitamente através das ações dos personagens. Mas tais opções de ordem metodológica não chegam a atrapalhar a força das histórias e do livro como um todo, que ainda tem cada capítulo iniciado por epígrafes sobre a felicidade, que são também um charme à parte.
Apesar de publicado há quase meio século Os Vendedores de Felicidade continua pertinente na sociedade atual, cada vez mais impessoal e hedonista, por conferir uma importância exagerada à beleza do corpo e à busca do prazer sem limites, numa deturpação da ideia de felicidade. Uma das razões é que ela não deve ser vista como um modelo único, destituído de valores morais e motivações de ordem ética que a embasem. Pois uma felicidade deste tipo não se sustenta. E ainda assim, afinal, mesmo uma verdadeira felicidade responderia aos nossos anseios? Será mesmo que viemos a este mundo para sermos felizes? Ou seria apenas a melhor parte daquilo que vivenciamos? No fim das contas, a lucidez maior está com um dos personagens, quando ele afirma que cada homem tem o direito de buscá-la à sua maneira, de escolher suas próprias ilusões.
Marcello Simão Branco

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