quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

B9, Simone Saueressig

B9, Simone Saueressig. 314 páginas. Novo Hamburgo: Editora Clube de Autores, 2011.

Simone Saueressig é uma das mais ativas e bem-sucedidas autoras brasileiras de ficção científica e fantasia. Vencedora de prêmios literários de prestígio, como o Nestlé em 1988, publica seus livros regularmente ano após ano, a maioria deles por editoras do seu estado de origem e residência, o Rio Grande do Sul. O Anuário já resenhou outras de suas obras em edições anteriores e este livro apresenta algumas diferenças em relação aos outros. É, salvo engano, o seu trabalho mais longo, um romance, e é de FC, além de ter sido publicado primeiramente em capítulos num blog na internet para só depois aparecer impresso e de maneira praticamente independente.
Mas talvez a principal característica de sua obra mantenha-se: é uma história endereçada ao seu público preferencial: os jovens. Mas, como em outros de seus escritos, não se destina exclusivamente a eles; é rico e complexo o suficiente para ser lida com seriedade e prazer por pessoas de qualquer idade.
Mais desenvolta e prolífica em histórias de fantasia de recorte brasileiro e, vez por outra, com elementos sobrenaturais, a autora com b9 inverte essa orientação ao apresentar uma história de moldura clássica de ficção científica. O romance mostra uma nave de gerações chamada nca 4468 em missão à estrela Gliese 581, onde um planeta em órbita deverá ser colonizado. Pouco antes de chegar ao destino, porém, a nave é atingida por um cinturão de asteroides inesperado e, avariada, é conduzida à órbita da estrela mais próxima, um sistema binário. Mas o detalhe nem um pouco insignificante é que a estrela principal é, na verdade, um buraco negro que, num breve espaço de tempo, deverá tragar a nave em suas entranhas.
O palco para um bom romance hard de fc já estaria bem armado, mas o foco da autora é outro. O verdadeiro drama no interior da nave não é apenas tirar a nave do perigo, mas contar a história de b9. Mas quem é b9? Depois do acidente, o pai de duas crianças morre e quem passa a cuidar delas é o avô, o comandante da nave, Oliver Carges. Só que o sujeito está longe do padrão de retidão moral e liderança carismática tão comum em histórias do gênero. Carges é autoritário e sexualmente pervertido, praticando orgias e não poupando nem seus netos. Engravida a neta Sofia e estupra o neto Douglas. Com medo e vergonha, o menino foge para o interior semi-abandonado da nave. E recomeça sua vida de forma anônima, simulando mesmo que esteja morto. E assim nasce b9, o nome tirado de uma jaqueta que antes pertencia a um homem que o ajudou e veio a falecer.
Devido a um problema no sistema de comando da nave, o comandante Oliver não é mais reconhecido pelo computador central para poder pilotar a nca para fora do buraco negro. E o segundo em comando é justamente b9, o seu neto. Começa, então, uma busca por seu paradeiro. Tanto pelo comandante, como por sua irmã, que deseja saber, antes de mais nada, se Douglas está vivo e é possível tentar resgatá-lo.
O romance é intenso e com muita ação. De saída chama a atenção em suas primeiras páginas a objetividade e poder de concisão em sintetizar o enredo. Admirável. Mas é só o começo de um livro protagonizado por personagens jovens, mas que discute de forma profunda temas delicados e polêmicos: a violência covarde contra os frágeis, e ainda perpetrada por aqueles que deveriam servir de modelo moral e provedores de segurança.
Simone é habil em conduzir a história de ritmo ágil, ao mesmo tempo em que insere estas questões como leitmotifs da narrativa. E nisso a figura de Douglas Carges/ b9 serve como condutora, na própria dúvida existencial do menino violentado e do jovem que luta por uma nova identidade que apague sua dor e vergonha, mas sem que ele tenha noção integral do que vai se tornar quando amadurecer, se é que vai.
O cenário temático é de ficção científica, mas as questões realmente discutidas no livro são de interesse para qualquer cidadão ou pai de família cioso de como é importante proteger crianças e jovens de violências provocadas por adultos: estupradores e pedófilos que permeiam a sociedade e podem estar mais perto do que imaginamos.
Apesar do enfoque estar centrado na busca do paradeiro de Douglas, e das questões subjacentes embutidas na violência que ele e sua irmã sofreram, Saueressig não descuida do ambiente em que a história é contada, e este é, de fato, um dos raros livros brasileiros de fc ambientados inteiramente dentro de uma astronave. Assim, de maneira não muito detalhada, mas não descuidada, é narrado como a nave produz alimento, água e oxigênio, além de seu sistema de higienização. Elementos que só funcionam bem próximo da ponte de comando, pois à medida que se afasta, a situação geral vai se deteriorando. E é lá, nos chamados arrabaldes, que Douglas torna-se o incógnito adolescente b9, que vive de bicos, arrumando sistemas elétricos avariados.
A tripulação precisa de b9, Sofia também e até o seu avô. Todos por motivos diferentes, o que só entremeia os dramas e demandas pessoais particulares num cruzamento com os próprios dramas de b9. Assim, a narrativa é conduzida como que rumo à realização dos desejos de cada um, em que, claro, b9 será o ponto principal da resolução do romance. Mas tudo isso só será possível — se é que é — como parte da construção da identidade do próprio Douglas, da sua redenção depois da violência que sofreu. Nesta busca interna e particular do protagonista é que o romance ganha sua maior relevância.
Talvez a trama tenha se centrado em demasia nos dramas de cada personagem e deixado de lado um componente vital: a própria sobrevivência da nave. Ficou a impressão de que tudo seria resolvido apenas pela volta de Douglas, mas isso não soa muito verossímil. Podíamos esperar mais de uma tripulação de nave estelar para resolver um problema técnico de sobrevivência, sem depender em demasia de um só personagem.
No início do romance, informa-se que a nave orbita 14 dias pela estrela secundária e dois pelo buraco negro. Neste período de total escuridão, as pessoas passam a compartilhar os sonhos quando adormecem, num fenômeno onírico não explicado. Esta peculiaridade poderia ser mais explorada, embora ela seja citada como parte das experiências dos personagens ao longo da história.
Talvez por ter sido publicado de forma independente, o livro ressente-se de uma boa revisão. Em várias páginas trechos ficam truncados pela falta de uma preposição, ausência de pontuação ou por palavras grafadas de forma incorreta. Não atrapalha a leitura, já que ela é absorvente, mas exatamente por isso o texto merecia um trabalho mais profissional de revisão.
Se em termos de qualidade, a ficção científica brasileira se notabiliza mais pela ficção curta (contos e noveletas), b9 candidata-se, desde já, a estar entre os bons romances do gênero escritos no país. Pois Simone nos apresenta uma obra madura em suas especulações e segura em sua construção narrativa. E ainda mais importante, é uma história que pode interessar não apenas ao leitor de fc, mas por qualquer pessoa, por abordar de forma hábil um tema polêmico e necessário.
— Marcello Simão Branco

Nenhum comentário:

Postar um comentário