quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

A hora dos ruminantes, José J. Veiga

A hora dos ruminantes, José J. Veiga. Lançado originalmente em 1966. Edição utilizada: Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1972, 4ª edição, 102 páginas.

A cidade de Manarairema é como muitas outras pelo Brasil: tem todo tipo de gente trabalhando para ganhar a vida. Tem o vendeiro, o carroceiro e o ferreiro. Tem o padre, o casal de namorados e o valentão. Tem o menino que vende cigarros de palha, o consertador de carroças e a dona de casa. E tem também um monte de gente que não faz nada, mas adora uma fofoca. Por isso, a cidade entra em polvorosa quando, sem nenhum aviso prévio ou explicação posterior, um acampamento de gente estranha brota num terreno próximo. São erguidas barracas, construídas cercas e casinhas de madeira, mas os estranhos não aparecem para se apresentar aos manarairemenses.
Todos ficam alvoroçados, perguntam daqui e de lá, mas ninguém tem coragem de ir à tapera ver quem é aquela gente e o que pretende. Os dias passam e o mistério continua.
Geminiano, o carroceiro, é abordado por um dos estranhos que quer comprar sua carroça a qualquer custo. Mas o carroceiro recusa a venda e fica irritado com a insistência. Sua conversa ríspida não passou despercebida e logo virou assunto em toda a cidade.
Amâncio, o dono da venda, que também é o valentão de Manarairema, não tem muito apreço pelo carroceiro e critica publicamente a maneira como ele tratou o estranho. Para mostrar valentia, resolve ir ao acampamento e tirar as coisas em pratos limpos. Depois de um tempo, volta atemorizado e não fala nada para ninguém. Toda a cidade fica inquieta com a reação de Amâncio, e piora quando Geminiano acaba por submeter-se às ordens do povo da tapera. Não vendeu a carroça, mas parece humilhado.
Os estranhos continuam a investir sobre os moradores da cidade e cada um que recusa atender as ordens vindas da tapera, logo recebe a visita suplicante de Geminiano ou de Amâncio, tentando convencer o renitente a ceder.
Os dias passam e o povo fica cada vez mais amedrontado com a presença ameaçadora da tapera ao longe. De repente, sem motivo ou explicação, a cidade é tomada por milhares de cachorros vindo da tapera. São tantos que mal há lugar para pisar. Os animais espalham-se por cada centímetro quadrado de Manarairema, entram nas casas e submergem a cidade em sua onipresença. Depois de muitos dias, com o povo já acostumado com a cachorrada atrevida, um sinal invisível e inaudível convoca a matilha. Os bichos saem da cidade aos trambolhões, deixando para trás uma Manarairema imunda, assustada e intrigada.
Não demora muito, nova invasão e, desta vez, a coisa é realmente séria: a cidade é inundada por bois, tão coladinhos uns nos outros que ninguém mais consegue sair à rua. Sem ter como se abastecer de água e comida, o povo sofre aprisionado em suas casas. Quando as esperanças estão perdidas e o fim se aproxima, os bois simplesmente desaparecem, deixando a cidade enterrada em toneladas de esterco.
O povo da tapera também se foi. Finalmente, Manarairema pode voltar ao normal, mas a memória dessa experiência sufocante nunca vai deixar de influenciar o comportamento do povo daquela cidadezinha indefesa.
Esta é a história que o escritor goiano José J. Veiga conta em A hora dos ruminantes, publicado em 1966, uma alegoria sobre o poder e sua efemeridade. Certamente foi a maneira como o autor reagiu aos anos de chumbo da ditadura, quando o inocente era considerado subversivo e a opressão se manifestava nas formas mais absurdas. Compõe com Não verás país nenhum (1981), de Ignácio de Loyola Brandão, e Fazenda modelo (1974), de Chico Buarque de Holanda, uma verdadeira trilogia fantástica sobre o autoritarismo que vivemos entre 1964 e 1985.
Mesmo hoje, mais de trinta anos depois do fim da ditadura militar, A hora dos ruminantes continua efetivo em seu discurso antiautoritarismo e nos faz pensar em como nós, feitos manarairemenses, reagiríamos àquele estado de opressão.
A hora dos ruminantes foi a primeira novela de José J. Veiga, muito bem recebida pela crítica especializada, que deu ao autor o reconhecimento completo pelo seu trabalho, iniciado poucos anos antes, em 1959, com a publicação da coletânea Os cavalinho do Platiplanto, livro bem avaliado e rico em sabores para o leitor de ficção fantástica porque boa parte dos contos – senão todos – está de algum modo associado ao fantástico.
O sucesso e o reconhecimento de Veiga são estranhos no imaginário dos fã brasileiro de ficção fantástica. Isso porque desmentem cada uma das suas principais “verdades” instituídas: 1) Que o mainstream tem preconceito visceral contra a ficção fantástica; 2) que ficção fantástica não vende; e 3) que só os fãs conseguem escrever ficção fantástica de boa qualidade.
Veiga sempre foi um autor identificado com o mainstream, um outsider que nunca fez parte do domínio dos fãs, seja em sua geração contemporânea, a Primeira Onda – conhecida como Geração GRD –, seja na Segunda Onda, formada por fãs e fanzines a partir de meados dos anos 1980. Apesar disso, e desde o primeiro livro, toda a sua carreira vitoriosa foi construída com a ficção fantástica.
Entre seus trabalhos há ficção científica (Sombras de reis barbudos, 1972, história alternativa (A casca da serpente, 1989), ficção alternativa (O relógio Belisário, 1995) e muita fantasia. Todos venderam bem, tiveram dezenas de edições, foram traduzidos em muitas línguas, reconhecidos pelo mainstream e agraciados com vários prêmios: Veiga recebeu da Câmara Brasileira do Livro três Prêmios Jabuti, por De jogos e festas (1981), Aquele mundo de Vasabarros (1983) e O risonho cavalo do príncipe (1993). Em 1997, o valor da obra de Veiga foi reconhecido pela Academia Brasileira de Letras que lhe outorgou o Prêmio Machado de Assis.
Falecido em 1999, José J. Veiga legou aos brasileiros uma obra ampla e de grande significado, que precisa ser conhecida e estudada por aqueles que pretendem atuar no meio editorial, seja como autores, críticos ou editores.
Cesar Silva

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