quarta-feira, 3 de abril de 2024

A Caixa Verde

 




A Caixa Verde (Claimed), Gertrude Barrows Bennett. Tradução: Gustavo Terranova Aversa. Capa: Natália Mieko Okamoto Aversa. 247 páginas. São Paulo: Andarilho, 2023. Lançamento original de 1920.

 

Uma tendência dos últimos anos no ambiente editorial voltado à FC&F no Brasil tem sido a publicação de autores estrangeiros em domínio público. Isso se tornou mais presente por causa da entrada de vários desses autores nessa condição. Com isso, além de nomes consagrados como, por exemplo, H. G. Wells e Lovecraft, outros menos conhecidos ou inéditos no país ganharam suas edições.

Este é o caso desta autora, Gertrude Barrows Bennet (1883-1948), apesar de A Caixa Verde não ser sua primeira obra a ser lançada no Brasil. Antes, dentro deste contexto recente, ela já teve publicados As Cabeças de Cerbero (The Head of Cerberus; 1919) e A Cidadela do Medo (The Citadel of Fear; 1918), pela editora Melusine, no sistema de financiamento coletivo Catarse.

A Caixa Verde começa com a descoberta de uma ilha alçada à superfície do mar depois de uma poderosa tempestade que quase tragou um navio na região das ilhas portuguesas dos Açores, no Atlântico Norte. Parte da tripulação vai ao pedaço de terra e se depara com um conjunto de altas colinas rodeadas por estranhas formações que parecem ruínas de uma cidade desaparecida. Um dos marujos traz um pedaço tirado de uma pedra e, ao mexer nela com mais cuidado no barco, vê surgir uma estranha e hipnótica estrutura retangular de cor esverdeada. James Blair, contudo, passa a ter pesadelos e visões perturbadoras, e vende a caixa numa loja de antiguidades. Mas esse objeto irá amaldiçoar toda a pessoa que tem contato com ela. Como é o caso de Jesse Robinson, um empresário de personalidade autoritária que vive com sua linda sobrinha, Leilah Robinson. Após contato com a caixa, ele passa mal, recebe a visita de um jovem médico, o doutor Vanaman, e a partir daí os três estarão definitivamente envolvidos pelo poder maléfico e sobrenatural da caixa, que, além disso, desperta curiosidade pela inscrição misteriosa numa de suas bases e por não ter uma abertura visível para se conhecer o que pode, eventualmente, ter em seu interior.

A autora escreve muito bem, tem uma linguagem fluente, sem firulas, e as imagens que cria a partir dos poderes da caixa impressionam pela imaginação de tons verdadeiramente fantásticos. Além disso, seus personagens são pouco mais densos do que o habitual nas revistas pulps, onde, a história foi primeiro publicada de forma seriada, na revista Argosy. Apesar disso, talvez fosse comum para a época, temos o manjado triunvirato: o ancião poderoso, sua linda protegida e um jovem cientista que, ao prestar serviços ao homem, se apaixona pela garota. Tal estrutura foi repetida à exaustão na literatura pulp, quadrinhos, séries de TV e cinema, século XX adentro. Mas não chega a incomodar nesta história, pois, como dito, ela é bem dinâmica e está centrada no mistério da caixa e seus efeitos perturbadores nas pessoas.

Tal como uma história circular, o desenlace se dá no mar: Robinson e sua sobrinha são raptados por um barco sobrenatural e Vanaman, claro, vai no encalço para resgatar, principalmente, Leilah. Mas, mais importante: o que seria exatamente esta caixa verde, e porque exercia esses poderes, e de quem, afinal ela era? As respostas são parcialmente oferecidas no contexto de uma civilização perdida que teria existido em tempos imemoriais entre a América do Norte e a Europa, sim, o continente mítico da Atlântida. Ao possuir a caixa e procurar desvendar seus poderes, Jesse Robinson desencadeou a fúria de uma antiga entidade atlante que, renascida, passou a reivindicar a devolução do objeto.

Quase tão interessante quanto a história, é a figura da autora, que foi descoberta, por assim dizer, em 1952, quatro anos após sua morte, quando do lançamento em livro do pequeno romance The Citadel of Fear, onde o pesquisador Loyd Arthur Eshbach (1910-2003) apresentou provas sobre sua identidade. Isso porque, em vida ela publicou com o pseudônimo de Francis Stevens, entre os anos de 1917 e 1923, quando escreveu doze histórias publicadas em revistas, como a já citada Argosy e em Weird Tales. Por receio de não ser bem recebida, ela sugeriu ao editor que a publicasse com um nome fictício, vindo daí o nome que ficou associado a um homem. Pelo fato de ter tido uma carreira muito curta, até a descoberta de sua verdadeira identidade muitos imaginaram, inclusive, que Francis Stevens fosse pseudônimo do autor e editor prestigiado da época, A. Merritt (1884-1943).

Portanto, sendo uma mulher, ela foi uma precursora nos gêneros FC&F nos Estados Unidos, especialmente na primeira metade do século XX, num ambiente extremamente masculino e machista. Para além de seu pioneirismo de gênero, Bennett é um nome importante pela qualidade de sua obra, uma instigante mistura entre ficção científica, fantasia e horror, bem ao feitio da corrente weird que tomou as páginas de muitas das pulp magazines nas décadas de 1920 e 1930. O influente crítico Sam Moskowitz (1920-1997) chegou a afirmar que ela foi “a maior escritora de FC no período entre Mary Shelley e C.L. Moore” – citado no livro Partners in Wonder: Women and the Birth of Science Fiction, 1926-1965, de Eric Leif Davin, publicado em 2005.

Por tudo isso, esse lançamento da pequena editora Andarilho – que inclui como brinde, um mapa da Atlântida! – na sua simpática coleção de livros de FC&F de autores em domínio público, merece mais atenção: seja pelo prazer de uma aventura enigmática e inteligente, seja por aqueles que pesquisam sobre a história da FC&F.

Marcello Simão Branco


sábado, 23 de março de 2024

O estranho oeste de Kane Blackmoon, Duda Falcão

O estranho Oeste de Kane Blackmoon
, Duda Falcão, 184 páginas. Porto Alegre: Avec, 2019.

Uma das primeiras manifestações editorialmente articuladas da literatura de gênero foi a Weird Fiction, que levou esse nome por estar associada à revista "pulp" Weird Tales, que circulou entre 1923 e 1954 nos Estados Unidos da América. Weird Tales era basicamente uma revista de contos de horror, mas como naqueles tempos pioneiros ainda não havia protocolos claros que estabelececem as características de cada um dos gêneros, os autores da revista costumavam misturá-los em receitas muito variadas, de modo que é quase impossível classificá-las em um gênero específico. São, portanto, Weird Fiction. Autores como H. P. Lovecraft, Robert E. Howard e Clark Ashton Smith são representantes destacados desse período. E como não havia limite algum, não raro os autores acrescentavam doses generosas de dramas épicos, e um dos período mais recorrentes era faroeste que, mais tarde, tornou-se também um gênero em si.
Para um autor americano do início do século XX, colocar histórias estranhas num ambiente de faroeste não era uma coisa incomum, afinal, em muitos lugares dos EUA, os cenários contuavam sendo os mesmos do século anterior. Contudo, esse tipo de narrativa acabou por ganhar corpo próprio, de forma a se tornar ele mesmo um gênero, que é hoje conhecido como Weird West. 
Pode parecer estranho um autor brasileiro se interessar por esse gênero tão estravagante e distante da cultura local, até porque temos ambientes similares ainda pouco explorados, como o visto na novela de horror O fascínio, de Tabajara Ruas, e o filme longa metragem Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. Mas visto de dentro do fandom, é natural que um autor fã apaixonado pela Weird Fiction sinta o impulso de fazer algo nessa linha. Tanto que já tivemos, em anos recentes, as antologias Cursed City (2011, Estronho), Sagas Volume 2:  Estranho Oeste (2012, Argonautas) e os romances Areia nos dentes, de Antonio Xerxenesky (2008, Não) e O peregrino: Em busca das crianças perdidas (2011, Draco), de Tibor Moricz.
Este é também o caso de Duda Falcão, escritor gaúcho que há anos vem desenvolvendo uma robusta carreira como autor de horror sobrenatural. Sua especialidade são as narrativas curtas, que já reuniu em quatro volumes: Protetores (2012, Underworld)), Mausoléu (2013, Argonautas), Treze (2015, Avec) e Comboio de espectros (2017, Avec). Seu trabalho mais recente é justamente um fix-up (romance construído a partir de contos independentes de um mesmo contexto) de Weird West com o pitoresco título O estranho Oeste de Kane Blackmoon, publicado em 2019 pela Avec, editora que nos últimos anos tem executado um trabalho muito consistente no ambiente da ficção fantástica.
O estranho oeste de Kane Blackmoon conta a história de um mestiço de branco e índio que sustenta sua vida como caçador de recompensas. Numa de suas caçadas, Blackmoon conhece Sunset Bison, xamã lakota (sioux, para os inimigos) que pede sua ajuda na missão sagrada de recapturar um demônio e o inicia nos mistérios do xamanismo. Mas, na luta contra o ente sobrenatural que ocupava o corpo de um pistoleiro cruel, o xamã acaba por ser ferido de morte. Nos seus últimos momentos, Sunset Bison passa para Blackmoon a tarefa de encontrar e prender o demônio. Para isso, ele terá de desenvolver suas capacidades místicas ainda incipientes, pois o demônio não é nem de longe o único ente do mal que se arrasta pelos desertos e pradarias do oeste selvagem. 
O romance é composto de oito contos dispostos linearmente na ordem dos acontecimentos: "Homem-urso", Bisão do Sol Poente", "Armadilha", Resgate do mundo inferior", "Procurado", Sob os auspícios do Corvo", "Nevasca", "O trem do inferno". Não há pretenção de situar as histórias de Kane Blackmoon num contexto histórico realista, como acontece, por exemplo, na série italiana de quadrinhos Mágico Vento, na qual circulam personalidades famosas em ambientes e fatos historicamente reconhecíveis, que dão à narrativa um caráter elegante e sofisticado. Neste aspecto, o romance de Falcão tem uma pegada mais similar ao primeiro volume da série A Torre Negra, de Stephen King: o estranho Oeste de Blackmoon é uma ambiente mítico, totalmente descolado do real, no qual anacronismos não são relevantes e podem até ser elementos dramáticos que fazem parte das histórias. 
A leitura do romance é agradável, muito por conta do talento de Falcão em contar histórias. Percebe-se a preocupação do autor em criar um texto que possa ser prazeroso e compreensível para leitores de todas as idades. Não há cenas grotescas e sanguinolentas em exagero, e a violência intrínseca ao gênero tem a estética das histórias em quadrinhos. O resultado é mais para uma aventura de dark fantasy do que de horror gore, embora tenha potencial para isso. Ainda traz, em camadas mais profundas, a questão do preconceito, uma vez que o personagem é um pária tanto entre os brancos quanto entre os indígenas, mas esse tema não foi explorado em profundidade. 
Kane Blackmoon acaba por se tornar um dos personagens de referência da literatura nacional de horror e teve ótima repercussão quando do lançamento do livro, em 2019. Ainda que o romance tenha um desfecho bastante satisfatório, acredito ser possível dar sequência às suas histórias, pois o mal do mundo é inesgotável. Mas isso é lá com Duda Falcão.
— Cesar Silva

sábado, 2 de março de 2024

Portal de Capricórnio




 Portal de Capricórnio, Ursulla Mackenzie. Capa: Denise Didelet. 219 páginas. São Paulo: Uiclap, 2019. Lançamento original em 2012.

 

Este livro me chegou em mãos através da própria autora, uma conhecida de anos do fandom brasileiro de FC&F. O leitor mais desavisado pode estar a estranhar o nome, mas se trata, na verdade, do nome artístico utilizado nos últimos anos por Márcia Olivieri. Inclusive, a edição original desta obra saiu com seu próprio nome.

É sua obra de maior fôlego até o momento, um romance muito movimentado sobre a descoberta de uma jovem, Dru River, de um livro antigo que traz consigo, além de segredos sobre as origens da humanidade, o acesso a um passado longínquo. Mas antes disso, ela, fascinada com o livro achado numa casa aparentemente abandonada no litoral paulista, justamente no meridiano do Trópico de Capricórnio, reúne, através de um amigo, vários pesquisadores para estudarem a obra. É então que Dru River, ao levá-los até o local onde o livro foi encontrado, é transportada subitamente junto com eles para um outro local, muito distante e totalmente diferente de tudo o que já conheciam e viveram. Confusos e transtornados, eles têm de entender onde estão, como foram parar lá, que relação há com o livro e, mais importante, como voltar para suas realidades.

Estas e outras perguntas irão movimentar os objetivos e ansiedades dos personagens que, aos poucos, e devido aos perigos repentinos que enfrentam, lutarão principalmente por sua sobrevivência num local que, pelo que vão percebendo, não faz parte do mundo que eles conhecem. Ambientes radicalmente diferentes se sucedem: ora um deserto branco e traiçoeiro, ora uma floresta densa e cheia de surpresas, ora planícies abertas, mas não menos perigosas. A temperatura também muda de forma abrupta, mas o mais terrível são as criaturas com que se deparam: seres rastejantes, ciclopes, monstros marinhos, tal como um kraken, seres centauróides, duendes e pássaros gigantescos semelhantes a seu ancestral pterosauro etc.

Mas que lugar é este e como foram para lá? Dru River e seus amigos transpassaram um portal do tempo, indo parar há 22 mil anos no passado da Terra. Mas podemos dizer que este passado do nosso planeta está muito mais próximo de um mundo de conto de fadas do que algo próximo do que seria verossímil por tudo que se conhece em termos científicos. Isso porque o romance, embora use o recurso da viagem no tempo, o faz apenas como meio de exploração de um lugar fantástico e mágico, mais próximo da mitologia do que da arqueologia.

Neste mundo, talvez de um universo paralelo, embora isso não seja explicitado, poderes mágicos e aparentemente sem explicação são possíveis, além do fato da própria presença de seres só conhecidos das lendas e fábulas – nesse sentido, senti a falta de um dragão. Daria um toque a mais de excentricidade ao conjunto de seres reunidos neste passado muito estranho.

Além de tentar sobreviverem, o grupo descobre porque, afinal, havia parado por lá. Um certo sujeito chamado Hans, representante de um Governo da Coalizão Mundial, lidera um plano secreto de colonizar este passado remoto. Mas resolveu usar dos serviços de Dru River e seu pessoal, por assim dizer, para que estes pudessem descobrir os segredos da principal civilização do tempo remoto, os Kathumaran que, por meio da magia e saberes ocultos, conseguem se manter protegidas e pode representar uma ameaça para os objetivos imperialistas.

Após conhecer Bram, o explorador dos Kathumaran e sua civilização, o grupo tenta voltar à nossa época, mas é surpreendido por Hans e seus soldados, que condicionam o retorno e sobrevivência, à revelação dos segredos da civilização. Eles voltam, mas resolvem adentrar o portal novamente para encontrar parte do grupo que havia se separado, além de tentar impedir os objetivos sinistros de Ham. Esta é uma espécie de ponto de virada da obra, pois ao retornar muitas das novidades são apenas repetidas, o que, de certa forma, diminuiu o impacto da obra até o seu final.

Mesmo assim, o leitor percebe que a história é cheia de reviravoltas. Se beneficia da tradição da fantasia do conto de fadas, com seus lugares fantásticos, personagens poderosos, magias e monstros, e em diálogo com os mundos imaginários criados por Burroughs e Tolkien. O perfil é voltado ao público infanto-juvenil, mas pode agradar a pessoas de qualquer idade, pois o forte é o entretenimento. A autora é competente nesse quesito que acaba, inclusive, reduzindo o impacto de possíveis senões presentes no enredo e seus desdobramentos, que poderiam se mais trabalhados e trazidos de forma mais importante à trama. Como, por exemplo, os detalhes desta coalizão mundial, como se formou, e descobriu o portal, e, talvez também, menos maniqueísta em seus objetivos. Ou então, a exposição do próprio passado, que fica apenas mostrado por meio das impressões dos viajantes, e não em si mesmo. Do jeito que está, parece mais, de fato, pertencente a um universo paralelo ou alternativo, mas poderia ter sido um pouco mais elaborado.

Há também alguns excessos de estilo, como o uso em demasia de pontos de exclamação na fala dos personagens. Um trabalho de edição poderia melhorar este aspecto, tornando a prosa com menos ruídos de interjeições. Como a primeira edição foi publicada em 2012, e esta teve relançamento em 2019, é possível que a autora tenha feito alguma revisão da obra, embora as duas edições, salvo engano, tenham o mesmo número de páginas. Mais importante, ela informa que escreveu uma segunda parte, onde responde às pontas soltas deixadas, e finaliza a aventura.

A paulistana Márcia Olivieri, já uma veterana da Terceira Onda da FCB, tem publicado contos em antologias de prestígio como, por exemplo, Vinte Voltas ao Redor do Sol (2005) e Fractais Tropicais (2018), além de também já ter aparecido no exterior, em países como Alemanha, Argentina, Espanha e Estados Unidos. Inclusive, tem em vista um novo romance, que deve ser publicado em breve. Tudo isso só comprova que estamos diante de uma autora de carreira contínua e séria, que tem procurado se aprimorar e dar novos rumos à difícil e incerta carreira de escritora. Ainda mais de FC e fantasia. Talvez por isso tenha adotado um pseudônimo estrangeiro? É possível, pois vários outros brasileiros já tentaram esta estratégia para auferir mais êxito.

Seja como for, Portal de Capricórnio é um romance de fantasia, mas com ênfase weird interessante, que poderia, inclusive, ser adotado como livro didático em escolas, pois além de um bom entretenimento, inclui também um leque de informações corretas, em termos de dados históricos e/ou mitológicos, que poderiam ser úteis em atividades para crianças e adolescentes.

Marcello Simão Branco

 

sábado, 24 de fevereiro de 2024

O homem fragmentado, Tibor Moricz

O homem fragmentado
, Tibor Moricz. 214 páginas. São Paulo: Terracota, 2013.

Um dos temas que tem sido mais utilizados pela mídia recente nas séries e filmes de fc&f é o dos mundos ou realidades paralelas. Basicamente, não há muita diferença: são realidades geralmente similares, mas com pequenas alterações que foram consequência de alguma sutil decisão passada. Mas pode haver também grandes alterações, que tornam uma realidade absolutamente irreconhecível diante da original. Essas ideias foram exploradas primeiro pelos escritores de ficção científica, como por exemplo no conhecido O homem no castelo alto, de Philip K. Dick, recentemente adaptado para uma série de tv pelo canal de streaming Amazon Prime, em que duas realidades paralelas distintas acabam por interagir de alguma forma. Vimos isso também na série de tv Fringe, e no romance pós-modeno A cidade e a cidade, de China Miéville.
Tais especulações renderam até um gênero a parte, o da história alternativa, que consite em dramas históricos nos quais alguma alteração no passado mudou os rumos da história, como por exemplo em A máquina diferencial, de Bruce Sterling e Willian Gibson, obra fundadora do movimento steampunk. Também podemos recordar do subgênero da ficção alternativa, que propõe obras alternativas de uma outra, como O outro diário de Phileas Fogg, de Philip José Farmer, e Frankenstein unbound, de Brian Aldiss. Ou ainda, na mistura de ficção alternativa e história alternativa, como em Anno Dracula, de Kim Newman. 
Enfim, há inúmeras variações sobre o tema. Seria surpreendente que os autores brasileiros apaixonados por ficção científica nunca tivessem enveredado por esses caminhos. A maior parte deles preferiu, contudo, seguir os caminhos da história alternativa, da ficção alternativa e do steampunk. São raros os exemplos de uma história sobre realidades paralelas. E é justamente este o caso do romance O homem fragmentado, do escritor paulistano Tibor Moricz.
Conta a história de um escritor que, sofrendo de culpa pela morte acidental de seu único filho, num momento de depressão intensa decide dar cabo da própria vida com um tiro de revólver na cabeça. Ao acionar o gatilho, porém, nada acontece: a arma parece ter falhado. Mas ao abrir os olhos adepois da grande tolice que havia intentado, dá de cara com a expressão assustada de seu filho não mais morto. 
É claro que a arma funcionou e, na sua realidade original, ele estourou os miolos. Mas sua consciência escapou da morte e passou a saltar entre as múltiplas realidades. A partir daí, a realidade desse homem infeliz vai se tornar um turbilhão de jornadas alucinantes por diversas realidades paralelas nas quais as coisas são cada vez mais bizarras. A certa altura, quando as coisas já pareciam totalmente fora de controle, ele encontra uma outra viajante entre as realidades, que vai ajudá-lo a entender e aceitar o novo modelo da sua vida, no qual a morte é apenas um episódio como outro qualquer.
Moricz é um dos nomes mais destacados da fase inicial da terceira onda da ficção científica brasileira, ainda na primeira década do século XXI. Seu romance de estreia foi Síndrome de Cérbero (2007), seguido de Fome (2009) e O peregrino (2011). Mais recentemente, o autor estabeleceu sua base editorial na internet, publicando exclusivamente em ebooks, inclusive reeditando os seus primeiros trabalhos no formato digital, mas O homem fragmentado segue existindo apenas no formato impresso. O autor sempre se mostrou ousado nas temáticas de seus textos e, apesar de ter iniciado já com boa técnica, ganhou maturidade ao longo do tempo. O homem fragmentado é certamente seu livro mais maduro e intimista, aquele com o qual ficou mais a vontade como autor. A história é intrigante e tem mistério suficiente para motivar o leitor a continuar lendo, mesmo nas situações mais absurdas nas quais lança o protagonista. 
Infelizmente, Moricz parece ter reduzido o ritmo: seu romance  mais recente, a ficção científica planetária Dunya, foi publicada em 2017, há já quatro anos. Talvez esse lapso tenha a ver com a crise editorial que desmotiva a publicação de livros no país, ou porque o Brasil pareça cada vez mais com os cenários absurdistas que o protagonista de O homem fragmentado tem que lidar. O que é uma pena, pois a ficção de Tibor Moricz é cada vez mais necessária no Brasil. 
Cesar Silva

domingo, 11 de fevereiro de 2024

CURVA DE ARGUMENTO

 

Miguel Carqueija

 

            Em pleno Porto Espacial de Jacarepaguá, o Capitão Barbosa e seu imediato Zé Peroba caminhavam pela Alameda J das lojas. Barbosa ia fazendo compras e aos poucos enchendo a sua mochila de couro. A certa altura virou-se para o outro e indagou:

            — E afinal, Peroba, você não vai comprar nada?

            — Com que dinheiro, Capitão? — respondeu o imediato, com cara de réu.

            — Ora essa, com o seu!

            — Capitão Barbosa, o senhor ganha dez vezes mais do que eu, e além disso...

            — Que dez vezes o que! São só oito! Ou você esquece que eu sou o comandante da Antaprise? Não posso ganhar salário de mendigo!

            Qualquer resposta do Peroba ficou entalada na garganta. Barbosa prosseguiu:

            — Já gastou todo o seu salário?

            — Bem, capitão, sabe aquele joguinho...

            — É por isso que eu não jogo! Que isso lhe sirva de lição! Ah, vamos ver aqueles mangás ali!

            Entraram os dois numa mangazeria. Ler quadrinhos japoneses era uma das manias do velho Barbosa. Peroba suspirou de enfado, já preparado para passar horas naquele estabelecimento.

            O velho Isolino, dono do negócio, quase grunhiu, pois Barbosa demorava muito para escolher, ficava olhando centenas de mangás. E realmente já estavam lá há quase uma hora quando subitamente, ao tentar puxar um número de “Confusão cósmica”, Barbosa esbarrou com outra mão. Voltou-se e deparou...

            — Arquibaldo!

            — Barbosa!

            — Que faz aqui? Largue o meu mangá!

            — Que quer dizer? Largue você! Eu peguei primeiro!

            — Sem essa! Eu peguei primeiro!

            — É meu!

            — Não, seu pilantra, é meu!

            — Pilantra é você! Lembro muito bem da barbeirada que você fez há dez anos, danificando a Antaprise...

            — Você é que fez a barbeiragem! O meu papagaio de estimação ficou gago de susto...

            — Senhores, por favor — interveio o Isolino — não rasguem a revista! Me dêem isso aqui!

            Isolino pegou a revista e colocou-a na caixa, aos cuidados da Arlete.

            — Um deles vai comprar. Guarde enquanto isso!

            Zé Peroba se aproximou da caixa, interessado em puxar conversa. Afinal, ela era uma senegalesa linda...

            — Parado aí! Nem pense em se apossar do mangá!

            Peroba se virou: era o Bicudo, primeiro oficial do Capitão Arquibaldo.

            — Você também por aqui?

            — E daí? Você também, não é?

            — Por favor, senhores! — exclamou implorativamente o dono do local, vendo que os quatro estavam prestes a se engalfinharem por causa de uma revista. — Só restou esse exemplar desse número, mas posso encomendar outro... vocês já espantaram todos os fregueses...

            — Pois eu não vou esperar! Eu quero esse! — gritou o Capitão Barbosa.

            — Egoísta! Eu é que não vou esperar! Eu quero esse!

            Arquibaldo e Barbosa agarraram-se mutuamente e foram ao chão, derrubando uma estante repleta, para maior desespero de Isolino e pânico de Arlete e Júlia, as duas funcionárias. No instante seguinte Zé Peroba e Bicudo também se engalfinharam.

            — Parem! Ordeno que parem! Acabem com essa briga imediatamente! Eu resolvo esse assunto!

            Pararam todos instantaneamente, espantadíssimos. Surgira uma figura estranhíssima, um sujeito alto, hirsuto, descabelado, trajado de maneira antiquada e de aspecto feroz.

            —Quem é você? — perguntou o Capitão Barbosa, esforçando-se por se levantar.

            — Ora, quem sou eu! Então não me reconhece, Capitão Barbosa? Eu sou o famoso psiquiatra, o Doutor Mexilhão!

            — Nunca ouvi falar. Por favor, não gosto de ser interrompido quando estou brigando! Aliás, como sabe o meu nome?

            — Está escrito no seu crachá!

            — Ah, tá. Ora bolas! Esqueci de guardá-lo — assim dizendo, Barbosa colocou o objeto num dos grandes bolsos da jaqueta.

            — O que quer o senhor? — quis saber o Capitão Arquibaldo. — Não marquei nenhuma consulta, muito menos consigo.

            Pondo as mãos atrás das costas o Dr. Mexilhão, que por sinal carregava uma vasta mochila de magiplast, acercou-se dos dois beligerantes:

            — Isso não é problema, posso dar uma contulta grátis e dupla como propaganda dos meus inestimáveis serviços. Podem se considerar privilegiados. Você é o Capitão Arquibaldo, não é?

            — Como você sabe? Não carrego nenhum crachá.

            — Está bordado na sua jaqueta.

            Arquibaldo enrubesceu.

            — Avisei a mamãe que não precisava fazer isso.

            — O que eu percebi é que vocês dois são um caso preocupante de regressão milenar.

            — O que quer dizer com isso? — indagou Barbosa.

            — Que vocês, sendo comandantes de astronaves, na ponta do progresso, comportam-se como dois trogloditas, é isso que eu quis dizer.

            — Mais respeito! — exigiu o Capitão Barbosa. — Não sabe quem eu sou? O que eu fiz?

            — É claro! — e Mexilhão fungou. — Você é o capitão que ao aterrissar com sua nave abalroou a torre de controle no Astroporto de São Paulo...

            — Bem, bem, isto é, quero dizer...

            — E eu? — berrou Arquibaldo. — Eu não sou um palhaço, sou um respeitável comandante espacial!

            — Eu bem sei — disse Mexilhão, sarcástico. — Você só pousou por engano no campo de futebol, acabou com a partida e ainda incendiou o gramado.

            — Eu... ãh... como é que você sabe?

            — Sou um homem bem informado! Agora se me dão licença, darei uma solução imediata a esse ridículo litígio e garanto que os dois sairão daqui como amigos!

            — Está bem, falastrão. Quero ver que espécie de solução você vai dar.

            — De acordo — acrescentou Barbosa.

            — O que você acha? — consultou Peroba ao Bicudo.

            — Não sei. Isso está esquisito — e Bicudo deu de ombros.

            Isolino dirigiu-se ao Mexilhão:

            — Meu senhor, se puder apaziguar os ânimos eu ficarei eternamente grato!

            — Não precisa tanto, então agora eu vou agir!

            Chegou para a Arlete:

            — Empreste-me a revista, por favor.

            Arlete, meio assustada, olhou para Júlia, que não falou nada, depois para Isolino e este assentiu. Então ela entregou. Barbosa e Arquibaldo, intrigados, não tiravam os olhos do barbudo psiquiatra.

            — Preciso de uma mesa vazia — rosnou Mexilhão para Isolino.

            — É pra já, senhor.

            Colocou alguns livros num espaço qualquer numa estante, e mostrou a mesa:

            — Serve essa, senhor?

            — É de madeira. Ótimo. Agora pode se afastar.

            Sem muita vontade de contrariá-lo o Sr. Isolino se afastou um pouco e o médico depositou o mangá sobre a mesa. Então pôs-se a folheá-lo.

            — Não está pensando em ler o mangá, eu presumo — observou Barbosa.

            — Claro que não. Detesto mangás! Só estou querendo achar o meio. São 240 páginas... está bem, então tem que ser na 120.

            Abriu o mangá nas páginas 120-121, deixou-o assim escancarado sobre a mesa e recuou ligeiramente. Então buscou no interior de sua japona e lá de dentro retirou uma machadinha. E antes que alguém pudesse — ou ousasse — detê-lo ele desceu a lâmina sobre o mangá, partindo-o ao meio certeiramente e de quebra partindo a mesa em duas partes.

            Novas pessoas que se haviam arriscado a entrar na livraria saíram correndo. As outras sete pessoas que lá já estavam ficaram todas congeladas e mudas. Impassível, Mexilhão guardou a machadinha, abaixou-se, recolheu os dois pedaços da revista e aproximou-se dos apatetados astronautas.

            — Peguem! Metade para cada um!

            Como em transe eles pegaram e Mexilhão se aprumou.

            — Bem, cumpri o meu dever. Agora tenho que ir, outro dever me chama!

            — Mas... mas... mas... peraí... — balbuciou Barbosa.

            — Não se preocupem! Não cobro nada pela consulta! Foi uma amostra grátis!

            Arquibaldo, ainda em estado de choque, murmurou:

            — Mas espere aí... que idéia foi essa...

            — Na verdade a idéia original não foi minha, eu aproveitei de Salomão. Até mais, senhores e senhoritas!

            Disse isso e foi embora.

            Alguns segundos depois eles começaram a acordar do aturdimento. Isolino foi o primeiro a falar:

            — Alguém pode me dizer quem vai me pagar o prejuízo?

            Disse isso e desmaiou, sendo amparado pela Júlia, a garota holandesa, que buscou os sais num dos bolsos do infeliz livreiro.

            — Capitão, vamos continuar a briga? — indagou Zé Peroba, olhando para o Bicudo.

            — É claro que não, seu idiota! Vamos é pegar aquele calhorda! Afinal temos a obrigação de “pagá-lo” pelo excelente serviço!

            — E o que vamos fazer com isso? — perguntou Arquibaldo. O Capitão Barbosa foi taxativo:

            — Arquibaldo, decididamente eu não quero um mangá pela metade! Pode ficar com a minha parte!

            Entregou a metade do mangá para o outro. Este, menos perfeccionista, entregou as duas metades ao Bicudo.

            — Bicudo, guarde na sua mochila, eu pego na nave! Ainda bem que eu tenho durex! Agora, Barbosa, me ajude! Vamos nós dois atrás daquele safado e dar uma sova nele!

            — É claro, amigo! Se é que vamos conseguir encontrá-lo, ele leva grande vantagem!

            — Não importa, amigo! Vamos tentar pelo menos!

            — Esperem aí! — gritou a aflita Arlete, enquanto Júlia ligava para os paramédicos. — O mangá precisa ser pago!

            — Acha mesmo — escandiu Arquibaldo — que eu vou pagar por uma revista partida ao meio a machado? Passem bem!

            — Acho melhor irmos atrás deles, você e eu — disse Bicudo a Peroba. — Aquele maluco está armado de machadinha!

            — Preferia não ir, mas você tem razão. Não posso deixar que o meu capitão seja fatiado, por mais idiota que ele seja!

            — Vocês dois sabem qual é o pior nisso tudo? — gemeu a Arlete.

            — Não, o que? — disseram eles em uníssono.

            — Muito simples. Tenho certeza que este nosso desacordado patrão quando acordar vai descontar o mangá do nosso ordenado!

            — Que já é uma miséria — completou a Júlia.

            — Vamos rachar a despesa — disse Peroba, incapaz de resistir ao choro de duas garotas. — Bicudo, você dá a sua parte?

            Eles rapidamente pagaram e Arlete agradeceu mas ainda perguntou:

            — Mas e a mesa?

            Os dois se entreolharam.

            — Ah, não! — disse o Bicudo. — Ninguém vai levar a mesa! Vocês se entendem com o Isolino!

            Bicudo e Peroba saíram correndo, tentando encontrar os capitães.

            — Numa coisa pelo menos o malucão estava certo — lembrou Zé Peroba.

            — Em que?

            — Ora! Que os dois iam sair daqui como amigos!

 

NOTA – Chama-se “curva de argumento” uma figura literária que consiste numa súbita e radical mudança de rumo numa história, com o surgimento imprevisto de um novo fato ou personagem, como neste caso, com a inusitada aparição do Doutor Mexilhão. Ele tem sua própria série e esta é a primeira vez que interage com o Capitão Barbosa.

Imagem Pixabay.

 

Rio de Janeiro, 13 de março a 3 de abril de 2020.

sábado, 3 de fevereiro de 2024

O Enigma de Andrômeda

 



O Enigma de Andrômeda (The Andromeda Strain), Michael Crichton. Tradução: Fábio Fernandes. 305 páginas. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. Lançamento original em 1969.

 

Este romance é um clássico do sub-gênero tecnothriller, que procura trabalhar com enredo de ação e suspense em torno de um problema científico e/ou tecnológico na fronteira do conhecimento. O Enigma de Andrômeda se distingue, ainda, pela abordagem a partir de uma perspectiva médica/biológica. Há outros romances nesta linha, mas talvez nenhum com o impacto deste. E isso além do fato de que a maioria dos tecnothrillers trilhou o caminho do suspense político em meio ao contexto da Guerra Fria e novos armamentos e tecnologias.

Nos anos 1960, em plena disputa pela primazia espacial e militar, os EUA criam um projeto secreto para explorar a possibilidade, teórica, em princípio, de estudar e desenvolver alguma arma biológica a partir de supostos microorganismos situados no espaço próximo à Terra. Para isso lançam alguns satélites de exploração até que um deles choca-se com um meteoro e entra na atmosfera. Qual não é a surpresa e o choque quando se descobre que o Scoop-7 matou quase todos os habitantes de Piedmont, uma cidadezinha do estado do Arizona.

Com isso é reunida uma equipe de cientistas lideradas pelo prêmio Nobel de Medicina Jeremy Stone. Na verdade, ele é que havia proposto ao governo a criação deste projeto anos antes – chamado de Wildfire –, mas não com objetivos militares, e sim científicos. Ele e mais três especialistas (um microbiologista, um patologista e um cirurgião) são levados a uma instalação subterrânea ultrassecreta no interior do estado de Nevada, em uma corrida contra o tempo para descobrir o que ocorreu em Piedmont, a partir dos destroços do satélite e dos dois únicos sobreviventes: um homem idoso e um bebê. Foi mesmo causado por um microorganismo? De origem terrestre ou alienígena? Quais suas propriedades, como age no organismo humano, qual o grau de contaminação e letalidade?

Como o leitor já deve ter notado, Crichton faz uma crítica ao governo norte-americano por perverter uma iniciativa que teria interesses científicos. Esta crítica pode ser estendida a muitos outros países, e deixa implícita a hipótese de que um processo de doença epidemiológica de consequências catastróficas pode ter sido criada num laboratório. Estas situações são muito prováveis, principalmente na época em que houve a rivalidade entre norte-americanos e soviéticos. E a exploração dessa possibilidade se tornou comum em muitas teorias da conspiração, principalmente quando uma nova doença contagiosa é descoberta. Mais recentemente, as suspeitas, fundadas ou não, sobre o surgimento da Covid-19 também estão nesse contexto.

O romance se desenvolve como se fosse os cinco dias da maior crise científica da história dos EUA. Cada capítulo se passa num deles e progressivamente as pesquisas avançam, bem como seus desdobramentos. Crichton escreve de forma intensa e com muito realismo, tratando o assunto com o conhecimento científico da época. Assim, as páginas tem um aspecto semidocumental, com a apresentação de relatórios médicos, descrições de experimentos biológicos, gráficos, tabelas, infográficos e até uma bibliografia acadêmica ao fim da obra, para quem quiser estudar o assunto de forma mais profunda. Mas nada disso torna o livro chato. Ao contrário: reforça ainda mais o teor realista da obra, tornando-a mais impressionante para o leitor.

Dessa forma, todas as teorias de vida extraterrestre são apresentadas – pelo menos até a época em que o livro foi escrito –, e uma delas, justamente, é esta da chamada panspermia. De microorganismos de origem extraterrestre que adentram em nosso planeta. E no caso da “Variante Andrômeda” se mostrando uma bactéria de aspecto mortal. Com uma estrutura interna diferente das estruturas celulares da Terra, uma espécie de hexágono cristalino – mas sem DNA, RNA, proteínas ou aminoácidos –, é mortal aos seres vivos do nosso planeta ao provocar uma rápida coagulação no interior do organismo, solidificando o sangue, por assim dizer. Contudo, como irão descobrir os cientistas, pode haver alguma esperança, pois ela sofre contínuas mutações ao contato com o oxigênio presente na Terra.

Há um ponto especialmente interessante de O Enigma de Andrômeda que poderia ter sido mais explorado, mas talvez não o tenha porque poderia encaminhar a história para um sentido mais especulativo. É a Teoria da Bactéria Mensageira, ou seja, da possibilidade do envio de um microorganismo como meio de comunicação de uma espécie inteligente a outra. Isso mesmo: uma civilização extra-solar enviaria ao espaço profundo uma forma de vida que poderia estabelecer alguma comunicação com outra espécie inteligente. No livro ela teria sido apresentada por um engenheiro de comunicações, num congresso de Astronáutica no começo dos anos 1960. Talvez não por acaso, pois o romance surgiu no contexto da efervescência da corrida espacial da época, e Crichton explorou, justamente, esta perspectiva biológica. Factível ou não, a ideia é fascinante.

Na época, Michael Crichton (1942-2008) havia se formado em Medicina pela Universidade de Harvard, mas já havia dado os primeiros passos na carreira de escritor. Contudo, antes deste livro havia publicado apenas com pseudônimos, e O Enigma de Andrômeda foi o primeiro assinado com seu próprio nome. O sucesso imediato fez sua carreira de escritor decolar. De fato, o livro foi rapidamente adaptado ao cinema, num filme ótimo que se tornou também um clássico, homônimo de 1971, dirigido por Robert Wise (1914-2005). Anos depois, em 2008, no ano da morte de Crichton, Ridley Scott produziu uma minissérie baseada na história.

De fato, e como o leitor pode ter percebido ao ler o resumo do enredo acima, a obra tem muitas qualidades, que se tornariam uma marca de Crichton: uma prosa direta, com personagens interessantes e ativos, colocados quase sempre em situações limite, com muita tensão e suspense, em torno de temas e eventos na fronteira do conhecimento, na maior parte das vezes relacionados à FC. Muito prolífico, ele se tornou também roteirista e diretor de filmes competentes. Exemplos: Westworld: Onde Ninguém tem Alma (Westworld; 1974), O Homem Terminal (The Terminal Man; 1974), a adaptação de outro thriller médico Coma (1978), baseado no romance do também médico Robin Cook, entre outros. Sempre com uma visão crítica e por vezes irônica sobre os rumos da relação do ser humano com a tecnologia e a pesquisa científica.

Em termos populares Crichton, muito presente a partir dos anos 1970 até a sua morte precoce aos 66 anos, é mais conhecido como autor do romance Parque dos Dinossauros (Jurassic Park; 1990), de fato mais uma de suas obras muito boas – e que recebeu aqui no Brasil o Prêmio Nova em 1992. Mas, em termos de contribuição original à FC, acredito que O Enigma de Andrômeda ainda seja o mais interessante e influente. A editora Aleph relançou a obra em 2018, e ela continua, portanto, acessível aos leitores brasileiros.

Marcello Simão Branco